Presépio indigena Por articulista frei Gilvander Moreira - CPT - Comissão Pastoral da Terra Escreve todas às terças-feiras
É
tempo de natal, mas dá para celebrar o natal no meio da fase mais
cruel do capitalismo, máquina de moer vidas humanas e vidas de todos
os seres vivos, que atualmente não apenas explora, mas superexplora
a dignidade humana, a dignidade da mãe terra, da irmã água e de
toda a biodiversidade? A realidade está mais para sexta-feira da
paixão, porque na última eleição no Brasil foram eleitos para o
poder político políticos da pior estirpe, que acumpliciados com o
poder econômico das empresas transnacionais, com o capital
especulativo, com agronegócio e mineradoras, estão eliminando todas
as conquistas de direitos sociais conquistados com muita luta e tendo
custado a vida de milhares de mártires, durante as últimas décadas.
Sob
a avalanche do antinatal do mercado idolatrado, necessário se faz
resgatar o sentido bíblico do Natal de Jesus Cristo, que é
inspirador e revolucionário. Faz bem entendermos a narrativa bíblica
do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o nascimento do
galileu que se tornou Cristo. O Evangelho de Lucas não é crônica
jornalística escrita sob o calor dos fatos. Escrito na década de 80
do século I da era cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da
História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na
ressurreição de Jesus Cristo. Para o evangelista Lucas, foram os
pastores – os trabalhadores mais discriminados da época – os
que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano.
Quando nasceu Jesus Cristo? Onde? Em que contexto? Na presença de
quem? E foi visitado e acolhido por quem?
Jesus
de Nazaré nasceu em tempos de imperialismo romano com o imperador
Augusto baixando decreto para aumentar o peso da tributação nas
costas do povo, além de manter a superexploração, por meio da
escravidão, a quem eram submetidos mais de 60 milhões de pessoas
nas muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas:
“Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto
ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o
pai de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele
teve que viajar da cidadezinha de Nazaré, na Galileia – periferia
e norte da Palestina -, até Belém, na Judeia, mais de 120
quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua esposa Maria que
estava na iminência de dar à luz um menino (Lc 2,3-5). Em uma
colônia dominada pelo imperialismo romano, por governadores
submissos aos interesses imperiais e com a cumplicidade de um poder
religioso – o sinédrio – que usava o nome de Deus para excluir e
marginalizar a maioria do povo, como trecheiro, estradeiro, “irmão
de rua”, migrante, retirante, sem-terra, sem-teto, refugiado,
índio, quilombola, migrante e judeu da periferia, nasceu Jesus
Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior. Jesus não
nasceu em Jerusalém nem em Roma, capital do império, nem em
Brasília, nem na Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e
José tiveram que ocupar um curral na periferia de Belém, porque não
encontraram hospedagem na cidade, certamente porque estavam sem
condições financeiras de pagar hotel ou hospital particular.
Ao
descrever o nascimento de Jesus, o evangelista Lucas estabelece
estreito paralelismo com a morte e ressurreição do Messias. De
fato, em Lc 2,7a se diz que “Maria enfaixou Jesus e o colocou na
manjedoura”; em Lc 23,53a afirma-se que “José de
Arimateia enfaixou o corpo de Jesus e o colocou em um sepulcro”.
Ou seja, escrevendo uns cinqüenta anos após a crucificação e
ressurreição de Jesus Cristo, o evangelista aponta que a missão de
Jesus será espinhosa (tinha sido), terá que enfrentar a violência
de podres poderes e de opressores (tinha enfrentado ...) - e, por
isso, será condenado à pena de morte, crucificado (martirizado)
(tido sido ...), mas ressuscitará ao terceiro dia (tinha
ressuscitado).
Jesus
nasce no meio dos pastores (Lc 2,8), os injustiçados e execrados
pela classe dominante (saduceus) onde estão os senhores “de bens”
que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social. Entre todos os
segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as
pastoras eram os/as mais explorados/as, considerados/as impuros/as,
principalmente porque não respeitavam as propriedades privatizadas.
Para os pastores e pastoras, o território era um bem comum e, por
isso, levavam os rebanhos que cuidavam para pastar em outras
propriedades. Assim eram considerados invasores de propriedades
privadas. Para os pastores e as pastoras, “Terra de Deus, terra de
irmãos!”, tema da Campanha da Fraternidade de 1986 que desencadeou
a luta social que fez inscrever a função social da propriedade na
Constituição Federal de 1988.
“Um
anjo de Deus apareceu aos pastores”
(Lc 2,9), não apareceu ao imperador, nem ao governador, nem a nenhum
sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada pura, integrada à
sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que
reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que
iria testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a
utopia “vida e
liberdade para todos/as e tudo”
(Jo 10,10). Hoje podemos dizer que um/a anjo/a apareceu a Marielle
Franco, aos indígenas, aos quilombolas e continua aparecendo a
todos/as os/as considerados/as impuros/as que se irmanam na luta em
defesa dos injustiçados/as.
Nos
Evangelhos de Lucas e de Mateus, o nascimento de Jesus não é
apresentado de forma neutra diante das contradições e desigualdades
sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras
comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) fazem opção de
classe, têm lado: o lado dos oprimidos e injustiçados. A luz divina
foi experimentada pelos pastores e pastoras, em uma noite escura (Lc
2,8-9), – como a noite que se abateu sobre o povo brasileiro com a
eleição de Bolsonaro, de governadores, de deputados e senadores,
todos vassalos de um capitalismo ultraliberal. A luz e a força
divina irromperam naqueles e naquelas que eram os/as mais
rejeitados/as na Palestina, colônia do Império Romano.
Nas
primeiras comunidades cristãs se lia naquela época o texto do
profeta Isaías que dizia: “O povo que andava nas trevas viu uma
grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria”
(Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos pastores e pastoras foi:
“Não tenham medo! Eis uma ótima notícia para todo o povo
explorado. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador,
que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10). Essa mensagem ganha
eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo imperador ou
rei, arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que
estava sendo entronizado como novo Salvador (soter, em grego)
e Senhor (Kurios, em grego).
As
primeiras comunidades cristãs fazem uma revolução copernicana e
subvertem a ideologia dominante que divinizava o poder e quem estava
no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e
nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que
nasceu no meio dos superexplorados. O anjo alerta: só quem se
mistura com os periféricos e com eles convive consegue experimentar
o divino se revelando no humano a partir dos porões da humanidade
(Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos e empobrecidas acumula
preconceitos e se desumaniza. Diz o evangelista Lucas que os anjos
fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom,
em hebraico) no meio do povo (Lc 2,14). A glória de Deus brilha
quando o humano em todas as pessoas é respeitado e valorizado. Paz
como fruto da justiça, shalom, acontece quando os
governos com organização popular efetuam mudanças estruturais para
superar a desigualdade social e promover a justiça social com
respeito à imensa diversidade cultural, aos direitos da natureza,
dos animais e toda a biodiversidade existente no nosso país e no
mundo.
“Os
pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do
acontecimento”
(Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às
catedrais do deus mercado, nem ao Império do capital, nem ao
agronegócio e nem às mineradoras. “E
todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados”
(Lc 2,18). Quem não ouve, não respeita e nem participa da luta
dos/as sem-terra, dos/as sem-teto, dos atingidos pelas mineradoras,
dos/as migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em
situação de rua, dos/as indígenas, dos/as quilombolas, das
mulheres e dos nossos irmãos e irmãs LGBTTQIs[2] não
consegue compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus
Cristo.
Os
pastores e as pastoras reconhecem o poder popular nascido na
periferia de Belém, cidade do pastor Davi que se tornou rei bom. “É
de ti Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador”
(Miq 5,1), bradava a profecia inspiradora do profeta Miqueias.
Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico)
significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o menor
entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade
para lutar por um governo justo, popular e democrático. O verdadeiro
“rei dos judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é
um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar
às pressas, logo após o nascimento, como refugiado, para não ser
assassinado pelo poder repressor de plantão.
Segundo o Evangelho de
João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para
todos/as (Jo 6,35-59). Os pastores e as pastoras intuem com sabedoria
que o poder democrático, participativo e popular vem da periferia,
dos injustiçados, dos pequenos.
O
natal trombeteado aos quatro ventos pelos arautos do mercado
idolatrado é um antinatal, abusa do nascimento de Jesus Cristo para
auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança, viagens que
resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões
de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças.
O Papai Noel é um mentiroso, nojento e fantoche do ídolo capital
que cumpre uma tarefa suja: seduzir as crianças e as famílias para
consumirem ao máximo até se consumirem e se desumanizarem
gradativamente. Quem não se alia à luta por direitos de sessenta
por cento dos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário
mínimo por mês não consegue vivenciar o sentido sublime e profundo
do Natal de Jesus Cristo, está sendo mentiroso/a, pois não está
abraçando o projeto de Jesus, o Cristo libertador e salvador.
Quem
é discípulo/a do menino que nasceu como refugiado na periferia de
Belém precisa insurgir ao lado de toda a classe trabalhadora e
camponesa e das forças vivas que lutam pela superação de todas as
injustiças. É hora de acordar do sono imposto por falsos pastores,
falsos padres, por fake news e pelas contradições
dos Partidos Políticos. É hora de despertar para as lutas de base e
massivas. Os poderosos aparentam ser gigantes, mas têm pés de
barro, pois estão recheados de contradições e mentiras. O menino
Deus nascido na periferia de Belém vive em todos/as que lutam por
justiça social, justiça agrária, justiça ambiental, justiça
urbana e por direitos humanos fundamentais. Por isso, no Brasil, em
2019, no Natal de Jesus: Deus se fez índio, quilombola ...
Frei
e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI,
SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares
e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers e pessoas Intersex.
Fonte: frei Gilvander Moreira
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