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terça-feira, 5 de maio de 2020

“Se eu me calar, quem os defenderá?”

           
Por Gilvander Moreira - Escreve às Terças Feiras


Feliz de um povo que não esquece seus mártires”, gosta de repetir Dom Pedro Casaldáliga. “De fato, é imprescindível resgatar a memória dos mártires e processo histórico, do contrário não é possível compreender o presente e forjar um futuro digno. Dia 10 de maio de 2020, celebramos 34 anos do martírio do padre Josimo Moraes Tavares: 10/5/1986 a 10/5/2020. Por isso, o recordamos. Após tentativa de assassinato contra padre Josimo, no dia 15 de abril de 1986, quando cinco tiros foram disparados contra a Toyota em que ele viajava na defesa dos camponeses, profundamente ameaçado de morte - e de ressurreição! -, incompreendido por colegas padres e agentes de pastoral, inclusive, padre Josimo foi convocado a elaborar um relatório de suas atividades e a esclarecer as circunstâncias que levaram a tantas ameaças de morte contra ele.

Em seu belíssimo Testamento Espiritual e profético, pronunciado durante a Assembleia da Diocese de Tocantinópolis, MA, no dia 27 de abril de 1986, poucos dias antes de seu assassinato, dizia Josimo que sua morte estava anunciada, encomendada e prescrita nos anais das correntes que desejavam ardentemente eliminá-lo. Fazendeiros e empresários do campo já o haviam condenado sumariamente à pena de morte. Mas Josimo se encontrava firme, impulsionado pela força do Evangelho de Jesus Cristo, pois havia assumido sua missão pastoral de compromisso com a causa dos camponeses oprimidos e injustiçados.


Josimo declarou: “Pois é, gente, eu quero que vocês entendam que o que vem acontecendo não é fruto de nenhuma ideologia ou facção teológica, nem por mim mesmo, ou seja, pela minha personalidade. Acredito que o porquê de tudo isso se resume em três pontos principais: a) Por Deus ter me chamado com o dom da vocação sacerdotal e eu ter correspondido; b) Pelo senhor bispo, dom Cornélio, ter me ordenado sacerdote; c) Pelo apoio do povo e do vigário de Xambioá, então Padre João Caprioli, que me ajudaram a vencer nos estudos. “O discípulo não é maior do que o Mestre. Se perseguiram a mim, hão de perseguir vocês também.” Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os defenderá? 

Quem lutará a seu favor? Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho mulher, filhos e nem riqueza sequer, ninguém chorará por mim. Só tenho pena de uma pessoa: de minha mãe, que só tem a mim e mais ninguém por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão dela. Nem o medo me detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora quero que vocês entendam o seguinte: tudo isso que está acontecendo é uma consequência lógica resultante do meu trabalho na luta e defesa dos pobres, em prol do Evangelho de Jesus Cristo que me levou a assumir até as últimas consequências. A minha vida nada vale em vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados e despejados de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem lar. É hora de se levantar e fazer a diferença! Morro por uma causa justa.


Padre Josimo Tavares sabia que ‘os filhos das trevas’ – latifundiários amantes do deus capital – estavam na iminência de matá-lo. Ele teve a coragem de não fugir da missão. Padre Josimo sabia que a verdade liberta, porque consola os explorados, mas dói e incomoda os opressores. Como Jesus subindo da Galileia para Jerusalém, enquanto coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Josimo continuou sem arredar um milímetro do seu compromisso com os camponeses injustiçados. Dia 10 de maio de 1986, dia das mamães, padre Josimo foi assassinado covardemente enquanto subia as escadas do prédio da Mitra Diocesana de Imperatriz, MA, onde funcionava a sede da CPT Araguaia-Tocantins. Ainda teve forças para entrar no hospital andando. Isso foi o ‘presente de grego’ que fazendeiros e jagunços deram a dona Olinda, mãe do padre Josimo, no dia das mães, sendo ele filho único.

Em 2006, Claudemiro Godoy do Nascimento, no artigo “20 anos com Josimo”, recordava: “Há 20 anos, o Brasil vivia momentos de transformações políticas e econômicas que dinamizavam o cenário das relações políticas. Na região do Bico do Papagaio a situação não se diferenciava. Com o anúncio do fim do regime ditatorial havia uma rearticulação política das oligarquias rurais na chamada Nova República. A luta social se encontrava diante de fortes momentos de tensão e conflito por parte de fazendeiros e trabalhadores rurais que tinham na Igreja, na CPT, nos sindicatos e nos novos movimentos sociais do campo uma esperança em ver realmente a terra partilhada para todos e todas. Josimo é a testemunha fiel e nos ensina que vale a pena dar a vida pela causa do Reino, das comunidades e do povo. Sua morte significou o compromisso assumido em denunciar as estruturas de morte alimentadas pelas injustiças políticas de mandos e desmandos de uma oligarquia rural que ousava e ainda ousa se estabelecer no poder da República. É neste sentido que Josimo se torna o padre mártir da Comissão Pastoral da Terra ao selar com seu sangue uma opção, um compromisso e um engajamento na defesa dos oprimidos, em especial, os trabalhadores rurais.” 


Poderíamos relembrar os versos de Pedro Tierra escritos por ocasião do martírio de Padre Josimo em maio de 1986: “Quem é esse menino negro / Que desafia limites? / Apenas um homem. / Sandálias surradas. /Paciência e indignação. / Riso alvo. / Mel noturno. / Sonho irrecusável. / Lutou contra cercas. / Todas as cercas./ As cercas do medo. / As cercas do ódio. / As cercas da terra. / As cercas da fome. / As cercas do corpo. / As cercas do latifúndio”.

Para Josimo, ser padre significava sentir a vida brotando como serviço justo a Deus e aos pobres, sobretudo. Para ele, o culto, a eucaristia, a teologia e toda a missão pastoral significava o agrado que fazemos a Deus no serviço aos pobres, aos doentes e marginalizados da sociedade. Percebemos nos escritos, nos poemas e nos registros de Josimo uma profunda intimidade com sua opção primeira, a saber: a Diakonia, ou seja, o serviço profético emancipatório, o estar sempre servindo aos empobrecidos do Bico do Papagaio, que eram os trabalhadores rurais expulsos e espoliados da terra pelos grandes fazendeiros locais e pelos políticos ao estilo coronelista. Portanto, ser padre segundo Josimo era ser Profeta da Justiça, Pastor na Caminhada e Sacerdote humilde que procurava oferecer a Deus oferendas justas. Josimo é a própria oferta. Tornou-se um ofertório vivo para nossas comunidades e para a construção do Reino de Deus a partir do aqui e agora.


Padre Josimo, em vida plena, continua vivo em nós na luta. Vivo nas memórias do povo, nas experiências dos educadores populares, nos escritos da Teologia da Libertação e no compromisso dos poucos agentes de pastorais que continuam reafirmando o mesmo compromisso com o Reino de Deus, com a construção de um mundo democrático, com a justiça social, ambiental, urbana e sustentabilidade ecológica. Não podemos deixar que a história de Josimo se perca. Ele é importante porque tornou o povo sujeito da história. Com Josimo, os dominados constroem suas histórias que não mais é feita segundo a lógica da classe dominante.

O nome de Padre Josimo está hoje em centenas de Acampamentos de Sem Terra, de Assentamentos de Reforma Agrária, de Ocupações Urbanas, de Comunidades Eclesiais de Base, de Escolas, de Ruas etc. Ele está muito vivo e presente nos corações e nas mentes de milhões de pessoas que lutam para que a Mãe terra seja libertada das garras do latifúndio e partilhada com milhões de sem-terra através de uma reforma agrária popular, massiva e democrática.


Como cantor da Caminhada nas noites escuras da opressão, movido pelo testemunho de Josimo, Zé Vicente compôs a música “Renascerá” em sua homenagem: “Renascerá, renascerá, o teu sonho, Josimo, / De um novo destino renascerá! / E chegará, e chegará tempo novo sagrado / Há tanto esperado, pra nós chegará!

Quem conviveu com Josimo diz: “Ele era um poeta, tocava violão, gostava de escutar as histórias das pessoas, tinha um jeito humilde de ser, gostava de usar aquelas chinelas havaianas…” Enfim, pela sua opção pelos pobres e pelo seu compromisso com a causa dos camponeses expropriados de suas terras e explorados, padre Josimo se tornou outro Cristo no nosso meio. Padre Josimo se sentia confirmado pelo discurso da montanha de Jesus, onde em alto em bom tom, o Galileu profetizou: “... Felizes os que, como o padre Josimo, são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu. Felizes vocês, como padre Josimo, se forem insultados e perseguidos, e se disserem todo tipo de calúnia contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes ...” (Mateus 5,10-11). Por essa mística profética não podemos nos calar diante de nenhuma injustiça. Que tenhamos a coragem e a lucidez do padre Josimo de perguntar com nossa práxis: “Se nos calarmos, quem os defenderá?”

Frei Gilvander Moreira
Ele é articulista deste jornal O guardião da Montanha. E escreve às terças-feiras
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.        

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