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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

"Capitalismo é idolatria do mercado?"

Por Gilvander Moreira[1]

Diversas vezes nos seus escritos, Karl Marx se refere ao capitalismo como um Moloch, um ídolo que exige o mundo inteiro como um sacrifício devido e como um monstruoso deus pagão, que só quer beber néctar na caveira da morte. A crítica da economia política de Marx está recheada de referências à idolatria: Baal, Moloch, Mammon, Bezerro de Ouro. E Marx usa também o conceito de fetichismo (Cf. LOWY, 2007, p. 301). Essas referências inspiraram teólogos da Teologia da Libertação, tais como Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Hugo Assmann e Jung Mo Sung, na elaboração da Teologia da Economia que compreende o capitalismo como idolatria do mercado e do capital, pois o mercado e o capital são endeusados.[2] No altar do mercado, o deus capital sacrifica seres humanos e toda a biodiversidade para continuar reproduzindo os ossos do capital.

Mais do que Marx, Friedrich Engels se dedicou a elucidar as formas históricas e sociais concretas da religião cristã em suas relações sociais na luta de classes. A cristandade foi entendida por Engels não como uma “essência” atemporal, mas como um sistema cultural que experimentou transformações em diferentes períodos históricos. Usando o método do materialismo histórico-dialético, o que explica a sociedade capitalista como movida pela luta de classes, Engels, em A guerra camponesa na Alemanha, entende que o clero – coletividade de sacerdotes - é integrado por um corpo socialmente heterogêneo. Assim diz Engels sobre o clero: “em certas conjunturas históricas, dividia-se internamente segundo sua composição social. É desta forma que durante a Reforma, temos por um lado o alto clero, cúpula da hierarquia feudal, e pelo outro, o baixo clero, que dá sustento aos ideólogos da Reforma e do movimento revolucionário camponês” (ENGELS apud LOWY, 2007, p. 302).


Por Reforma se entende aqui o Movimento Protestante que buscava inicialmente mover a Igreja Católica a fazer autocrítica, iniciado pelo padre Martinho Lutero, que afixou 95 teses na Abadia de Westminster na Alemanha, em 31 de outubro de 1517. Lutero denunciava o comércio das indulgências e propunha a leitura dos textos bíblicos como fundamento primordial para a igreja. Na contramão do Evangelho de Jesus Cristo, a Igreja Católica, em vez de fazer autocrítica, promoveu uma contrarreforma se fechando e empurrando para debaixo do tapete seus graves erros; contrarreforma tocada a partir do Concílio de Trento, que aconteceu entre 1545 e 1563.

Guardadas as devidas e evidentes diferenças, essa análise de Engels se verifica também no Brasil, pois uma pequena parcela do clero, com postura crítica, de protesto e subversiva, está comprometida com a luta por direitos humanos fundamentais dos povos superexplorados: luta pela terra, por moradia, pela superação do racismo estrutural e por muitos outros direitos sociais. Referimo-nos aos sacerdotes que acompanham as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as pastorais sociais (CPT, CIMI, Cáritas, Pastoral Operária, Pastoral dos Migrantes, Pastoral da Criança, Pastoral Afro etc.) e os Movimentos Sociais Populares, inspirando-se na Teologia da Libertação e na leitura bíblica feita pelo Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI)[3]

Teologia Canastreira/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/7ª Parte

Mas a maioria dos padres cultiva e fomenta uma religião burguesa, isso por meio de modelos religiosos espiritualizantes, moralistas, com visão funcionalista da sociedade, legitimando, consequentemente, muitas vezes inconscientemente, a opressão e a superexploração perpetrada pelo capital e pela classe dominante. Engels entendeu a distinção entre a religião historicamente constituída e as primeiras comunidades cristãs, que eram formadas basicamente, salvo exceções, por pessoas da classe trabalhadora, entre as quais os ‘escravos do campo’ e os ‘escravos domésticos’[4], camponeses endividados e pessoas livres com direitos negados. O apóstolo Paulo afirma na primeira Carta à comunidade cristã de Corinto a existência do povo trabalhador nas primeiras comunidades cristãs: “Não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos homens, nem muitos poderosos, nem muita gente de família distinta” (1 Coríntios 1,26). O poeta romano Juvenal expõe a crueldade e a brutalidade da escravidão no império romano: “Para sua casa trêmula, era um monstro, nunca tão feliz como quando o torturador estava em ação e algum pobre escravo que roubara um par de toalhas estava sendo marcado com um ferro em brasa (JUVENAL. In: Sátiras 14,18-22)”. “Varas foram quebradas nas costas de uma vítima, a chibata deixou listras de sangue em outra, uma terceira foi açoitada com um chicote de nove tiras. Algumas mulheres pagam um salário anual aos açoitadores” (JUVENAL. In: Sátiras, 6,479-480). No interior do Império Romano, ao viver em comunidade e buscar colocar tudo em comum, as primeiras comunidades cristãs tentaram experimentar um tipo de comunismo primitivo.

“Os evangélicos farão parte da derrota do Bolsonaro" (Pastor Henrique Vieira). Não ao abuso da fé!

Em suas Contribuições à história da cristandade primitiva, Engels assinala uma diferença essencial entre as primeiras comunidades cristãs e o socialismo: “Os cristãos primitivos escolheram deixar sua libertação para depois desta vida enquanto que o socialismo localiza sua emancipação no futuro próximo deste mundo” (ENGELS apud LOWY, p. 2007, p. 303). Na mesma esteira dialética, a Teologia da Libertação apresenta pequena variação dessa perspectiva de Engels, pois aponta que as primeiras comunidades cristãs, ao buscar colocar tudo em comum, já iniciavam a experiência do reino de Deus – sociabilidade sem opressões -, que deve começar no ‘aqui e agora’, mas não termina aqui e nem agora. 

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E, também, pela prática comunitária antiacumulação, as primeiras comunidades cristãs infiltravam no tecido social um germe de subversão à acumulação de riquezas, base da engrenagem do sistema do imperialismo romano. Enfim, Engels trouxe à luz o potencial de protesto e revolucionário de segmentos religiosos, o que abriu pistas para o nascedouro da Teologia da Libertação que, ao usar o materialismo histórico-dialético para analisar a realidade, busca compreender os conflitos e as injustiças sempre considerando a/o trabalhador/a injustiçada/o, colocando em prática a opção pela classe trabalhadora e pelo campesinato.

 “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

Enfim, pelo exposto acima, não temos dúvida de que o capitalismo é, sim, na prática, idolatria do mercado e do capital. Portanto, ser pessoa cristã em uma sociedade capitalista implica e exige ser anticapitalista, o que passa necessariamente por viver a vida segundo o princípio da misericórdia, colocando o outro, principalmente o empobrecido como orientador da nossa forma de pensar e agir. Priorizar a luta pelo bem comum, viver em comunidade, superar o egocentrismo e não cair nas seduções do individualismo e nem do “comprar, comprar e acumular, acumular”, pois quem se isola e se reduz a ser consumidor de mercadorias do mercado idolatrado se consome aos poucos e morre lentamente de muitas formas. Viver é belo, mas conviver e lutar pelo bem comum é mil vezes melhor.

COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro 



"Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander


Referências.

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.



   

Frei Gilvander Moreira escreve para o Jornal

O Guardião da Montanha às terças-feiras.

Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG



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