"Na América AfroLatÍndia, no alto plano andino, no seio das culturas indígenas, o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), o marxista latino-americano mais original e criativo, viveu apenas 36 anos, mas deixou um legado teórico e de compromisso político na busca por harmonizar o marxismo com as concepções religiosas libertárias. No ensaio O Homem e o mito, de 1925, diz Mariátegui: “Em suas elucubrações metafísicas, o mito veio completar aquela necessidade de infinito que existia na natureza humana que nem a razão nem a ciência sozinhas poderiam satisfazer” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 15). Na sua análise, Mariátegui defende que o proletariado tem um mito: a revolução social. E o segredo maior dos/as revolucionários/as não está na ciência, mas em uma espécie de fé, uma paixão. “O proletariado tem um mito: a revolução social. Em direção a esse mito ele se move com uma fé veemente e ativa. […] A inteligência burguesa se diverte em uma crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que mal-entendido! A força dos revolucionários não está em sua ciência; é na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística e espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, como escrevi em um artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Motivos religiosos mudaram do céu para a terra. Eles não são divinos; são humanos, são sociais” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 51).
De fato, é contraditório com o método do materialismo histórico-dialético alguém se aprisionar no método marxista ou em qualquer outro método de análise da realidade. Partir da realidade, analisando-a com o método do materialismo histórico-dialético, sim, mas não como uma camisa de força. Dialogando com Mariátegui, dizemos que a força dos/as revolucionários/as não está só no método do materialismo histórico-dialético, mas também e, em muitas situações, na paixão, no desejo, na mística. Segundo a Teologia da Libertação, pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos poderes político, econômico e religioso, o “véu do templo se rompeu” (Mt 27,51) e não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano, Deus habita no ser humano e em todos os seres vivos. “Deus armou sua barraca entre nós”, diz o livro do Apocalipse da Bíblia (Ap 21,3).
Os estudos de Mariátegui contribuíram para que o padre Gustavo Gutierrez, também peruano, atualmente frei da Ordem dos Dominicanos, criasse, ao lado de Rubem Alves, a Teologia da Libertação, que, usando o método marxista de análise da realidade, tem contribuído para o avanço das lutas emancipatórias na América AfroLatÍndia e em outros continentes. A Luta pela terra e pela moradia que se pretende emancipatória precisa levar a sério que, salvo exceções raríssimas, o povo camponês que compõe o campesinato brasileiro e o povo sem-teto tem duas fomes: de terra e de Deus. Vivemos em contexto religioso de (neo)pentecostalismo na Igreja Católica e em muitas outras igrejas, sob a teologia/ideologia da prosperidade. Tempos de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismos, de religiões sem Deus, de salvações sem escatologia, de cristianismos light, de libertações que não vão muito além da autoestima.
O elemento religioso existe na alma do povo e não pode ser ignorado; melhor lidar com ele de forma emancipatória, porque senão o (neo)pentecostalismo e os fundamentalismos religiosos, uma espécie de neoliberalismo religioso, solapam a luta pela terra e pela moradia e todas as outras lutas por direitos sociais e ambientais. Não foi por acaso que se exportou dos Estados Unidos o pentecostalismo para o Brasil e América Latina, sob o nome de Renovação Carismática, na Igreja Católica, ou agasalhado em muitas igrejas (neo)pentecostais. Os ideólogos do império estadunidense perceberam que se a Teologia da Libertação com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais[2] continuassem se fortalecendo no Brasil e na América ‘afrolatíndia’, o sistema capitalista poderia ser posto em xeque e todas as lutas por direitos sociais seriam potencializadas. Nesse sentido, articular a luta pela terra e pela moradia tendo como instrumentos a cruz, símbolo do cristianismo, e a foice e o martelo, símbolos do socialismo, é indispensável. “A foice e a cruz podem conviver, desde que se tenha claro que cada uma delas pode ser marca mais forte de um grupo específico de lutadores sociais e não ser de outros, mas que juntas podem representar uma luta comum” (CALDART, 2012, p. 130). Também há momentos em que um instrumento ou tática religiosa pode assegurar o êxito de uma luta e em outros momentos um instrumento ou tática política arrojada pode ser o que se apresenta como mais promissor para garantir conquista de direitos, a superação de uma grande opressão.
Os/as camponeses/as da Bíblia resistiram diante dos grandes projetos do império e dos opressores da época. Diante do projeto de construir uma grande cidade e uma enorme torre, a de Babel, os/as camponeses/as da Bíblia responderam com o projeto popular de povoar todos os territórios com a socialização da terra. É o que defende a experiência bíblica do jubileu bíblico, narrada no livro de Levítico da Bíblia (Lev 25,8-17): “No 50º ano, cada um de vocês recuperará a sua propriedade. Vocês comerão o que o campo produzir” (Lev 25,10.13).
Quando Jesus de Nazaré apresentou sua plataforma de ação pública na sinagoga de Nazaré na Galileia (Lc 4,16-21), ele proclamou um Ano de Graça, ou seja, um Jubileu. Segundo o primeiro testamento da Bíblia, no ano do Jubileu, toca-se o “berrante” (sofar, em hebraico), que acontece no primeiro ano após sete vezes sete anos. Neste Jubileu, todas as dívidas devem ser perdoadas; todas as terras devem voltar ao primeiro dono (aos ancestrais); todos os escravos devem ser libertados. Enfim, é tempo de se fazer uma reorganização geral na sociedade; tempo para recriar a vida e as relações humanas com fraternidade, solidariedade libertadora, reconciliação e novos sonhos. Portanto, há muitos pontos de contato entre os marxistas socialistas e as pessoas cristãs libertadoras e um ponto em comum: o anticapitalismo. Reconhecer onde está a fonte da força do povo e das pessoas revolucionárias é imprescindível. No Brasil a fome de Justiça (de pão) e de Deus (de mística) são carne e unha. Feliz quem compreende isso e lida com as várias dimensões da pessoa humana de forma emancipatória."
Frei Gilvander Moreira |
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