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sábado, 17 de setembro de 2022

"O Fim? – A Última Frase"

“Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, é um imenso prazer

para mim dividir um planeta e uma época com você.”

Carl Sagan


Qual o maior medo que o ser humano possui?  Se você fizer uma pesquisa simples

com amigos ou amigas, ou mesmo no seu aplicativo predileto de buscas na internet,

um medo aparecerá de forma frequente: o medo da Morte. Alguns medos e fobias

surgem e desaparecem no decorrer da História. É difícil imaginar uma pessoa do

século 19 sofrendo de “Nomofobia” - o medo de ficar incomunicável por não ter

acesso a um celular - ou de “ciberfobia” – o medo de utilizar ou acessar

computadores. Mas o medo da Morte acompanha o ser humano através dos

tempos.

A história mais antiga registrada pela humanidade trata deste tema. Coube a George

Smith, um inglês estudioso da antiga Assíria, a se tornar o primeiro ser humano em

15 séculos a ler o “Épico de Gilgamesh”, epopeia mais antiga que aquelas escritas

por Homero ou registradas na Bíblia. O relato da saga de Gilgamesh, monarca da

região de Uruk, foi encontrado por Smith entre as milhares de tábuas de argila

retiradas das ruínas da biblioteca do rei Assurbanipal, na região onde hoje se

encontra a cidade de Mosul, no Iraque.


As mais de vinte e duas mil placas de argila foram retiradas das ruínas em 1849 e

enviadas para o Museu Britânico, em Londres. Apenas em 1872, após anos de

dedicação na catalogação e tradução das tábuas, que Smith leu uma das tábuas

que compõe o épico para um grupo de especialistas, tornando a descoberta uma

das mais importantes da história da Arqueologia.


Na época, a descoberta causou furor por descrever, em uma de suas passagens,

a história de um dilúvio que quase acabou com a humanidade, se não fosse por

um homem que sobreviveu ao montar uma arca depois de ser avisado pelos deuses.

Mas o que particularmente mais me chamou a atenção em Gilgamesh não foi a

menção ao dilúvio, mas o fato de que o épico mais antigo da História da

Humanidade trata sobre um homem que deseja vencer a Morte.


Este desejo do monarca nasce de uma profunda perda pessoal. A narrativa

encontrada nas tábuas de argila conta que Gilgamesh, monarca que governava a

região de Uruk e com origem divina, era tirano e despótico, e tão cruel que a

população pediu ajuda aos deuses para se livrarem do ditador. Os deuses

atenderam e enviaram um ser chamado Enquidu, metade homem e metade animal.

O combate entre ambos aconteceu, mas ao invés de acabar com Gilgamesh,

ao final do combate o enviado dos deuses para matar o despótico rei se tornou

o seu melhor e inseparável amigo.


A amizade de ambos se mostrou tão poderosa que suas façanhas incomodaram os

deuses. E as artimanhas divinas terminaram por matar Enquidu. Devastado pela

morte do amigo e companheiro de dezenas de batalhas, Gilgamesh deu-se conta

de sua própria mortalidade. E parte então para a fase final de sua jornada, quando

decide encontrar um meio de vencer a Morte. É nesta busca que finalmente o

monarca guerreiro se transforma em definitivo, transcendendo seus medos ao

redefinir o que a Morte representa.


A Morte nos assusta e nos causa sofrimento porque representa o fim definitivo de

um ciclo. E por isto pode ser tão devastadora. Nossas programações biológicas

mais básicas nos pedem “preservação”, “segurança” e “estabilidade” para que

possamos continuar vivos. Por isto que o medo de mudança ou do desconhecido é

natural. É a resposta primitiva a algo que pode significar a Morte, ou o “fim”.

Mas então, o que é “Morte”? O que é “fim”?


Eu me deparei com estas questões de forma profunda em 2014. Muitos se

lembrarão deste ano como aquele em que o Brasil perdeu de 7 a 1 para uma

seleção da Alemanha travestida de Flamengo em pleno Mineirão. Mas para mim,

2014 foi o ano que a Morte se mostrou a mim da mesma forma que ao lendário

monarca de Uruk: levando-me pessoas e seres próximos e queridos. Naquele ano,

um total de cinco mortes, das causas mais variadas, provocaram verdadeiros

terremotos nos locais mais profundos do meu ser.

 

Os questionamentos que nasceram em virtude daquelas desencarnações me

levaram a tomar a decisão de mergulhar ainda mais em mim. Precisava ficar só.

E me inscrevi para um retiro conhecido como “Busca de Visão” ou “Visão de Falcão”,

realizado na Montanha de Condor Blanco, no Sul do Chile.


NeEsse retiro, o participante fica isolado em um pequeno local demarcado em um

bosque, sem contato com ninguém, durante quatro dias. Não se é permitido

escolher o local onde se ficará durante o tempo de retiro. A chave é preparar-se,

mas ao mesmo tempo deixar fluir. Como na vida.


No dia do início do retiro, as pessoas são “semeadas” em seus respectivos locais

durante um belo e profundo ritual. Fui semeado em um local que, ao longo de

minha busca de três dias, deu-me profundas lições, totalmente relacionadas com

o que fui buscar ali.


Anos atrás, o local onde fiquei sofreu um incêndio. Isto era facilmente perceptível

pelos troncos queimados e ainda visíveis, apesar do crescimento da vegetação. 

Muitos seres queimaram e sua energia vital voltou para o Universo. Hoje, o verde

predomina. Um tronco queimado mostra o poder do renascimento, como um

símbolo.


Quando tinha onze ou doze anos assisti a série Cosmos, elaborada pelo cientista

Carl Sagan. Em dos episódios desta maravilhosa série que tomei conhecimento de

Shiva, o deus hindu da transformação. O deus traz em um de seus pares de mãos

o fogo destruidor e o sopro da vida. Criação e destruição são faces da mesma

moeda. 


As folhas secas que formam um tapete macio lembram-me do desapego que

procuro de forma mais profunda. As folhas soltas são mais que um tapete para

mim, são uma suave cobertura que protege o solo, o nutre e dão guarida a

incontáveis formas de vida. Vi um pequeno inseto alaranjado, tão pequeno quanto

a cabeça de um alfinete, movimentando-se entre as folhas caídas. Não sei se

ele existiria sem estas folhas. Quem sabe se a grande lição que vim aprender seja

que, o que soltamos de forma consciente e fluida, torna-se o tapete vivo que

manterá o ciclo da vida. Uma das formas de transcender a Morte é vivenciar o

desapego.


Pelo que tenho lido, estudado e ouvido, o apego é identificação. De alguma forma,

eu acredito que sou o que tenho, possuo, sinto, imagino. E lentamente acredito

que sou aquilo com que me identifico. Pode ser qualquer coisa: automóveis,

dinheiro, posição social.


É por isto que é tão desafiante o ego. Afinal, é com ele que nos identificamos da

maneira mais profunda. E como abrir mão dele, quando chegar a hora? Desapego

é felicidade, e felicidade é saber que o rio flui, frase do escritor chileno Suryavan

Solar - talvez uma das frases mais lindas e profundas que já ouvi.


E o que não é o rio senão o próprio Universo! Sendo o Universo um fluxo contínuo

de energia, eu também faço parte desde fluxo. Todos nós fazemos.


Volto meu olhar para o chão coberto de folhas. E imagino uma folha que se

identifique como folha. Chegou o momento, ela se soltará, será solta pelo galho

que a sustenta. Se ela se ver como folha, se ela se identificar com esta imagem,

ela sentirá medo e dirá: “vou morrer! Não serei mais folha! Desaparecerei!”. Mas

se ela se enxergar como parte do fluxo da vida e do processo da árvore, poderá

dizer: “Vou me transformar! Já não serei mais folha, mas minha energia continuará

de outra maneira, dando vida de outra forma!”.


Elevar o nível de consciência é talvez ampliar seu nível de identificação ao infinito,

à mais elevada potência. Treinar todos os seus corpos – físico, emocional, mental,

espiritual – a perceber o todo, a perceber-se parte do todo. Entregar-se ao fluir.


Gilgamesh transcendeu a Morte quando ampliou a percepção que tinha sobre ela.

Ele não consegue vencer a Morte diretamente, mas percebe que pode

transcendê-la por meio de suas ações. São seus atos que atravessarão os anos,

e ao conscientizar-se disto, torna-se mais sábio e justo. 


Perderemos o medo da Morte quando também formos capazes de ressignificá-la.

De olhar além do inevitável desaparecimento físico, da proximidade de corpos no

espaço e no tempo.


Se Morte é o fim de um ciclo e início de outro, nós morremos várias vezes

durante nossa existência. Morremos quando deixamos um emprego, terminamos

um relacionamento, mudamos de casa ou cidade. Morremos quando nossa roupa

predileta não pode mais ser usada, ou quando o time perde o campeonato.


Morremos quando um de nossos entes queridos resolve tomar a dianteira e partir

antes de nós. Morro quando acrescento linhas neste texto e sei que é o último de

uma série que tanto aprendizado me trouxe.


Isto significa que viverei um tempo de luto e de adaptação a um novo período.

Significa reconhecer o sentimento de dor e tristeza, respeitar esse sentimento e

abraçá-lo. Pedir ajuda se necessário for. E ao mesmo tempo, permitir que o novo

surja no espaço deixado por aquilo que se foi.


Neste momento, entendo o motivo pelo qual uma pessoa é “semeada” em uma

“busca de visão”. Porque uma semente, para brotar, precisa morrer, como disse

Jesus Cristo.


Osho, o famoso sábio e místico indiano, disse certa vez que “Morte” não é contrário

de “Vida”. Ele afirmou que o oposto de “vida” é “medo”, pois este sentimento que é

contrário a tudo o que a Vida representa.


Desta forma, percebo que escrever este texto final é morrer um pouco. Mas

coisas novas surgirão, novos projetos virão. E consciente de que os momentos

compartilhados nestas linhas escritas transcenderão o tempo e o espaço ao tocar

a mente e o coração de outras pessoas, noto o quanto é realmente nossos atos e

os momentos que vivenciamos que transcendem a vastidão do tempo e a

imensidão do espaço. E assim alcançamos a Integralidade.



Maurício Luz

Maurício Luz escreve a Coluna "Frases em Nosso Tempo", aos sábados para O Guardião da Montanha.

Ele é carioca e ganhou prêmios:

1º Belmiro Siqueira de Administração – em 1996, na categoria monografia, com o tema “O Cliente em Primeiro Lugar”. 

E o 2ºBelmiro Siqueira em 2008, com o tema “Desenvolvimento Sustentável: Desafios e Oportunidades Para a Ciência da Administração”..

Ex-integrante da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Conselho de Administração RJ. 

Com experiência em empresas como SmithKline Beecham (atual Glaxo SmithKline), Lojas Americanas e Petrobras Distribuidora, ocupando cargos de liderança de equipes voltadas ao atendimento ao cliente.

Maurício Luz é empresário, palestrante e Professor. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997). 

Mestre em Administração de Empresas pelo Ibmec (2005). Formação em Liderança por Condor Blanco Internacional (2012). 

Formação em Coach pela IFICCoach (2018). Certificado como Conscious Business Change Agent pelo Conscious Business Innerprise (2019). 

Atualmente em processo de certificação em consultor de Negócios Conscientes por Conscious Business Journey.

Agora neste ano de 2022, Maurício Luz cursa o Doutorado em Administração pela Universidade Caxias do Sul, RS

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