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quinta-feira, 4 de abril de 2024
"Comissão da Anistia reconhece Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, como anistiada política"
Fonte: Jornal da Cultura, TV Cultura, SP
Entrevista inédita, realizada em 1992, em homenagem à Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi em São Paulo
Por Ana Lúcia Dias, OGM
MORTO NAS DEPENDÊNCIAS
DO DOI-CODI
Suicídio foi a versão
das autoridades
Clarice Herzog aos 51 anos,
Clarice Herzog 51, ficou viúva do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, aos 34 anos.
Ele foi encontrado enforcado nas dependências do DOI-Codi em São
Paulo, no dia 25 de outubro de 1975. “Suicídio” foi a versão da
morte do jornalista atribuída pelas autoridades policiais.
Na opinião de Clarice, a
ditadura militar instaurou-se no Brasil devido a uma conjunção de
fatores. “Ainda não tínhamos um amadurecimento democrático no
país. Os setores golpistas aproveitaram-se da situação econômica
adversa e de uma inflação de 60% ao ano, na época considerada
galopante. Surgiram muitas tensões internas na sociedade, o que
gerou um clima propício à tomada de poder pelos militares. Os
grupos sociais ou mesmo as organizações de esquerda não estavam
preparados para enfrentar o golpe.
Os poucos focos de resistência
foram facilmente desarticulados. A direita tinha medo das posturas do
Jango, pois temia um golpe de esquerda. João Goulart não tinha
legitimidade para tanto e havia uma sensação de descontrole, com
provocações por da parte da direita e da esquerda”.
"Me lembro bem,
foi uma sexta-feira sombria"
No período Médici, a
repressão foi violentíssima. Foi, sem dúvida, a época mais
obscura, consequência do AI-5, instaurado pelo general Costa e
Silva. “Me lembro bem, foi uma sexta-feira sombria, dia 13 de
dezembro de 1968.”
Durante o governo de
Castelo Branco ainda aconteciam manifestações estudantis. Em 1965,
Clarice e Vlado foram para Londres. “Saímos em função do golpe.”
Vlado trabalhava no Estadão e havia uma série de provocações,
devido às suas posturas políticas. Vlado ganhou, da TV Educativa,
uma bolsa para fazer um curso de produção de TV.
Em 1968, decidiram voltar
ao país, por sentirem uma certa abertura. Clarice voltou em setembro
de 1968, com os dois filhos nascidos em Londres. Vlado, que
trabalhava na BBC, ficou em Londres para concluir o curso. Sua volta
estava programada para o dia 15 de setembro daquele mesmo ano. Porém,
ele resolveu passar pela Itália para visitar amigos, quando leu num
jornal: “A ditadura fica mais séria no Brasil”. Apesar da
dúvida, resolveu voltar. De cara, perdeu o emprego na TV Educativa,
em função de o julgarem comunista. “Ele sempre foi um homem de
esquerda, mas criticava o PCB e o movimento armado”, conta Clarice.
Vlado em Londres Clarice
era simpatizante do “Partidão” Tão logo chegou de Londres,
Clarice foi procurar o partido, disposta a fazer alguma coisa. “Eu
era simpatizante das ideias do partidão.” Disseram-lhe que
precisavam de gente para assaltar bancos. Ela disse: “Esquece. Era
só me prenderem ou fazer alguma coisa contra um filho meu, que eu
diria o que sabia e o que não sabia. Eu não tinha estrutura para
isso.
Clarice e seus filhos Ivo e André
Essa época foi muito
triste. Abria-se o jornal e lia-se: jovem atropelado em tentativa de
fuga. As pessoas mais politizadas sabiam o que estava acontecendo de
fato. Mas a maior parte da população não imaginava o que se
passava nos porões. Quando Vlado foi morto, um conhecido de meu pai
falou: ‘Seu genro ficou louco, como pode se suicidar com dois
filhos e mulher?’ Vlado morreu no governo de Geisel. Segundo
Clarice, “Havia uma postura de redemocratização, pois Geisel era
um nacionalista, por muito tempo ligado à Petrobras, estatal que
tinha um bom desempenho. A esquerda reconhecia isso e a gente pensou
que as coisas fossem melhorar”.
Vlado trabalhando
"A obrigação de todo
jornalista é informar a verdade"
Vlado acreditava que sua
obrigação era transmitir informações verídicas. Ele chegou a
produzir para a revista Visão uma série de matérias falando sobre
o “obscurantismo intelectual”, quando as melhores cabeças do
país estavam fora. Os militares da linha dura queriam acabar com
informação, “mesmo porque o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro) tinha sido o grande vitorioso nas eleições de 1974,
derrotando a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido do
governo. E, nessas eleições, o PCB colaborou muito para colocar
gente de esquerda no poder”, conta Clarice.
Ele não tinha jogo de
cintura para ser político Vlado acreditava que poderia fazer uma
revolução, começando no seu trabalho. Informar a população era
uma forma de contribuir para a democracia no país. “Vlado nunca
foi um político, era um intelectual. Ele nem tinha jogo de cintura
para ser político. Por isso, morreu. Se tivesse esse jogo de
cintura, talvez não tivesse morrido”, diz Clarice. Vlado optou por
uma das organizações que podiam combater a ditadura.
Quando Vlado contou para Clarice que havia ingressado no PCB, ela levou um susto, pois ele era um crítico contumaz do partido. Mas tinha uma explicação: apenas duas organizações podiam combater a ditadura: a Igreja e o PCB, as únicas que estavam mobilizadas. Na Igreja ele não entraria (Vladmir Herzog era judeu). Sobrava então o Partido. A experiência mais marcante para Clarice foi a perda de muitos amigos. “Nem vou falar da morte do Vlado, que nem é preciso falar.”
Ela se lembra até hoje de um colega dos tempos do curso de Química Industrial, que cursou
antes de Ciências Sociais. “Ele era órfão de pai e eu e mais
duas amigas do curso gostávamos muito dele. Chamava-se Norberto
Neri. Um dia, abrindo o Jornal da Tarde, li a matéria que anunciava
a morte do guerrilheiro Neri, encontrado enforcado num hotel.
Eu nem sabia que ele
fazia parte da luta armada, foi quase como a perda de um filho,
traumático”. Clarice, repórter da Última Hora Em 1964, Clarice
trabalhava no jornal Última Hora, de Samuel Wainer, e foi pega
totalmente desprevenida. “O golpe chegou e foi uma puxada de
tapete.” Ela tinha feito um artigo contra as Marchadeiras e o
editor de reportagem vetou seu artigo. “Eu era repórter foca
(iniciante) e, ao mesmo tempo, editava a coluna Palavra de Mulher.
Até então, nunca haviam me impedido de publicar qualquer nota”.
“O golpe foi um ato
extremamente assustador, porque não sabíamos o que estava
acontecendo. Em 1968, ao chegar de Londres, resolvi dar uma passada
na faculdade para rever os amigos, como Florestan Fernandes e
Fernando Henrique Cardoso. Quando cheguei lá, na Rua Maria Antônia,
me senti totalmente impotente diante da batalha: eram tiros e bombas
de gás paralisante contra pedras. A faculdade foi destruída, um
verdadeiro massacre”.
Clarice levou um susto
com a violência e o radicalismo dos estudantes. “Em 1964, eu fazia
política estudantil, mas que não era violenta. Nós pregávamos
cartazes”. Rua Maria Antônia, centro da capital paulista Não vou
dizer que a mulher tem uma relação de igualdade com os homens
“Eu
sempre fui uma mulher independente, nasci feminista. Tinha
consciência de que precisava trabalhar para manter minha
independência. Tanto que ao terminar o ginásio, cursei Química
Industrial para poder trabalhar.
“Eu tive a sorte de
casar com um homem que tinha uma mentalidade diferenciada”
Eu sempre tive certa
simetria com os homens, porém não vou dizer que a mulher tem uma
relação de igualdade com eles. Eu tive a sorte de casar com um
homem que tinha uma mentalidade diferenciada”, conta Clarice.
Vlado e Clarice Herzog em Londres
Vlado era eslavo e judeu.
Veio para o Brasil com 10 anos. Clarice era de esquerda, porém
sempre soube ser crítica. Embora Vlado fosse contra, ela sempre
colaborou como pôde. Conheceu Clara Charf companheira de Marighella,
embora não soubesse da real identidade do casal e muito menos do seu
envolvimento com a resistência. “Como eu possuía automóvel,
pediam-me para levar pessoas de um lado para o outro. Todos tinham um
codinome.” Clara Charf encontrava-se com Marighella na casa de
Clarice. “Antes dos encontros, Clara apareceu diversas vezes em
casa, para que a empregada conhecesse e não desconfiasse.
Clara Charf, 98 anos
Clara Charf e Marighela jovens
Num dos encontros,
Mariella quis me conhecer, pois tive um tio comunista que morreu no
Estado Novo, que Marighella havia conhecido. Após esse episódio,
ele ficou conhecido como tio.” Anistia Após a Anistia, quando
todos os companheiros e companheiras voltaram ao Brasil, Clarice
conseguiu um espaço para que um amigo fizesse uma exposição, no
Instituto dos Arquitetos.
Durante a vernissage, apareceu um amigo que
queria lhe apresentar uma amiga. “Eu olhei e era a Clara. Choramos
porque nossos companheiros não haviam voltado. Perguntei-lhe, então,
quem era afinal o tio? Foi então que ela me falou que era o
Marighella.” Clarice Herzog Clara Charf de cabelos brancos à
direita Vlado participava do PC (Partido Comunista) com um grupo de
jornalistas, do qual faziam parte Rodolfo Konder, Paulo Markum e
Duque Estrada. O grupo reunia-se para discutir de que forma poderiam
lutar contra a ditadura, dentro de suas respectivas áreas de
atuação.
“As reuniões
aconteciam em minha casa e eu era a única mulher do grupo. Após a
morte de Vlado, sofri uma verdadeira tortura psicológica. Nos
primeiros dias, telefonavam para casa, fazendo ameaças do tipo:
matamos seu marido e vamos matar todo mundo, complementadas por
palavras de baixo calão. Foram tantas as ligações que mudei o
número e o tirei da lista.
Não acredito que tenha
sido o pessoal da repressão, acredito, sim, que foi a população
mais reacionária”. Reaberto o processo, mas arquivado novamente
Outra tortura era praticada por um policial à paisana, que se
plantou na porta de sua casa para observar o movimento de entrada e
saída de pessoas. Ao mesmo tempo, grampearam o seu telefone. “Eu
sabia, mas falava normalmente porque tudo o que fizemos era aberto,
não fizemos nada clandestino.”
A postura de Clarice era
muito mais de apoio a Vlado. “Eu não estava envolvida
politicamente com o partido.” O seu pensamento em relação àqueles
dias mudou. “Estamos vivendo a democracia, o que aconteceu com o
Collor é um ato democrático, as Forças Armadas tiveram uma postura
absolutamente correta.
Por muito menos, ocorreu em 64 o contrário.”
O torturador de Vlado, o Gracieri (Pedro Antonio Mira Gracieri, o
capitão Ramiro), declarou para a ISTOÉ que faria tudo de novo. “Foi
aberto um processo contra ele, a pedido de Hélio Bicudo, mas foi
arquivado no dia 6 de outubro de 1992, sob alegação de um crime
político. Absurdo, porque eles nunca aceitaram que houve tortura
neste País.
A partir do momento em que se admite o crime político,
eles estão acatando que houve torturas.” “Vlado não cometeu
crime algum” “Eu não aceito essa anistia que nos foi imposta.
Vlado foi pessoalmente na sextafeira apresentar-se à delegacia de
investigações. Inclusive, nós estávamos discutindo no dia
anterior à prisão de Vlado, como ele deveria se portar, que não
admitiria em nenhum momento que era do Partido. Porque ele estava
fazendo um trabalho muito bom na TV Cultura e, se ele admitisse, todo
o trabalho e equipe iriam à bancarrota.”
Vlado pretendia sair da
Cultura, pois não aguentava mais a pressão e a censura. Ele
costumava dizer: “Primeiro vou consolidar essa equipe”. No final
do ano, ele pretendia realizar o sonho da sua vida: fazer cinema.
“Ele já tinha até o roteiro de cinema pronto.
Nós discutimos tudo
isso, porque o Konder, o Markum e todo o pessoal foi preso. Então
estávamos esperando, cedo ou tarde, que eles viessem prendê-lo. Nós
decidimos ir para o sítio naquele fim de semana, porque tudo para no
fim de semana. Não se consegue encontrar advogado ou um amigo, todos
estão fora.” Clarice e Vlado iriam para o sítio Clarice ficou de
apanhar o Vlado na TV Cultura, onde ele estava dando os últimos
retoques em um programa.
Nesse meio tempo, foram
procurá-lo em casa e Clarice disse que Vlado estava no trabalho.
Assim que os dois homens saíram, Clarice ligou para a TV e pediu
para avisá-lo que iriam até lá prendê-lo. Clarice pegou todas as
coisas de viagem e colocou no carro. A intenção dela era chegar
primeiro que os tiras, pegar o Vlado e partir para o sítio. Mas eles
chegaram antes, com ordem de prisão. E, então, aconteceu o pior.
Após a prisão de Vlado,
Clarice teve de cortar despesas, embora tivesse um salário
equiparado ao de Vlado, em função de ela já trabalhar na Standart,
Ogilvy & Mather. Mas, mesmo assim, ela teve de estabelecer
prioridades, como a educação das crianças. “Eu fazia psicodrama,
cortei, tinha chofer para levar as crianças, cortei. Reduzi o que
podia.” Seu filho mais velho sabia a causa da morte do pai Para
Ivo, o filho mais velho, a morte do pai foi traumatizante. “Ele viu
tudo e entrou no processo de somatização após a morte do pai. O
primeiro sintoma foi o silêncio.
E a psicóloga dele
chamou Clarice e achou que ele estava com ‘neustênia’, doença
rara, que começa nos olhos e, em seguida, ataca os músculos. Eu
fiquei desesperada, pois o neurologista tinha de fazer um teste com
choques elétricos. Ivo sabia que choque elétrico tinha sido a causa
da morte do pai.” Mas, Clarice não desistiu.
Quando foi buscar o
resultado do exame berrava: “Esse eu vou salvar, vou para onde for
necessário, mas esse garoto eu vou salvar. Porque sempre ficou na
minha cabeça, que se eu tivesse podido ir junto com o Vlado, eu o
teria salvado”. O resultado do exame foi negativo. “E todas as
pessoas amigas que me encontravam perguntavam: ‘E as crianças?’.
Eu chorava”.
Ivo e André estão hoje,
em 1992, com 26 e 23 anos, respectivamente. “Eu posso dizer que
criei duas criaturas ótimas. Os dois estão formados, Ivo casa no
final de novembro e André está estagiando em Paris.” Para
Clarice, essa postura crítica de fazer esse tipo de resistência faz
parte de sua personalidade: “Eu faria tudo de novo, porque eu não
admito viver sem em liberdade”. Ela até cita uma frase do Frei
Beto: “A população precisa é de comida no prato e liberdade”.”
Agradecimento especial à amiga, jornalista e editora de livros Salete Brentan, que revisou todo o texto e adaptou-o para nova ortografia.
Esta entrevista inédita
em homenagem à Clarice Herzog foi realizada, em
1992,
na empresa de publicidade Standart,
Ogilvy & Mather, onde Clarice, na época, exercia a função de
diretora e vice-presidente de planejamento e pesquisa de mercado, que ficava na Faria Lima, hoje em 2024, ainda fica na capital
paulista, mas mudou de nome e endereço, hoje é apenas Ogilvy e fica
na Av. Nações Unidas,5.777,
Alto de Pinheiros.
E
a Clarice Herzog, esta mulher valente e corajosa e muito doce relatou que fui a primeira
jornalista a querer saber dela, a verdade sobre o caso Herzog. Ficamos
conversando por cerca de 1h30 gravei a entrevista em fita K7, na época
nem existia celular, nem câmeras digitais.
Esta
entrevista faz parte do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) para a
Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. A Resistência das
Mulheres na Ditadura Militar, que depois foi também projeto de
dissertação para o mestrado na Unicamp com o nome de Guerrilhas da
Memória.
Homenagem feita à Clarice Herzog, quando ela completou 80 anos pelo Instituto Vladimir Herzog, por sua família e amigos em julho de 2021.
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