Por Gilvander Moreira
"Tempo de Natal e de virada de ano é tempo propício – kairós – para fazermos revisão de vida, retrospectiva e resgatar o que de mais humano existe em nós e na humanidade. Para isso, faz bem peneirarmos o sentido do Natal: o do mercado idolatrado e o de Jesus Cristo. Uma avalanche de mensagens natalinas chegou a nós por meio das redes virtuais, eufemisticamente chamadas de ‘redes sociais’. Mensagens para todos os gostos: muitas ingênuas e uma minoria, críticas, criativas e inspiradoras. Como desejar “feliz natal, boas festas e um próspero ano novo” diante de milhões que tiveram um infeliz natal, não puderam fazer nenhuma festa e não terão um próspero ano, porque estão adoecidos, em luto pelos mais de 620 mil mortos, não apenas pela pandemia da covid-19, mas principalmente pela política genocida que impera no nosso Brasil, porque têm seus corpos bombardeados pela bomba da fome causada pelo latifúndio, pelo agronegócio (que não produz alimentos, mas commodities para a exportação para acumulação de lucro e capital para poucas empresas transnacionais), pela epidemia de câncer e Alzheimer causada principalmente pelas centenas de agrotóxicos jogados pelos agronegociantes na agricultura empresarial, que envenenam a mãe terra, a irmã água, o ar e os alimentos; sob uma política econômica neoliberal/neocolonial que amputa diariamente o braço social do Estado e hipertrofia o braço repressor do Estado, privatizando a terra, as águas, as empresas estatais e públicas, as rodovias, ferrovias, os (aero)portos, cortando direitos trabalhistas, previdenciários e sociais toda semana e, pior, devastando o meio ambiente com desmatamento, mineração, garimpo e monoculturas, com um poder legislativo nos três níveis do Estado onde predomina o centrão e a direita e um poder judiciário que defende mais a propriedade privada capitalista do que a dignidade humana e a dignidade de toda a biodiversidade? Quem lidera ou é coadjuvante ou cúmplice desta brutal violência planejada a sangue frio para matar milhões são os Herodes de hoje e assassinam cotidianamente milhares de meninos-Deus que insistem em nascer todos os dias.
No natal trombeteado aos quatro ventos pelos arautos do mercado idolatrado, um antinatal, o “dono da festa”, que nasceu já ameaçado de morte, fica mais oculto do que o amigo oculto. Uma sociedade capitalista abusa do nascimento de Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança, viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. Com roupa vermelha para induzir o consumo de um refrigerante (melhor não dizer o nome), de uma transnacional, que mais serve para desentupir pia, o papai noel é um mentiroso, nojento e fantoche do ídolo capital que cumpre uma tarefa suja: seduzir as crianças e as famílias para consumirem ao máximo até se consumirem e se desumanizarem gradativamente. É idolatria colocar esta representação do polo norte para seduzir as crianças para fomentar a cultura do “dar presentes” e encobrir a cultura do menino-Deus nascido em um cocho de curral na periferia de Belém que, como testemunham os pastores e os magos, pedem para sermos PRESENTE, PRESENÇA HUMANA, na vida das outras pessoas, não apenas de nossa família nuclear biológica, mas da família humana e ecológica mundial.
Ver e sentir o menino-Deus nas crianças recém-nascidas é mil vezes mais humano-divino do que ver o menino-Deus representado em presépios artificiais. Estranho pessoas colocarem suas próprias fotos em mensagens de natal. Não seria mais humanizador partilhar uma foto que atualizasse o menino-Deus nascendo atualmente de mil formas no meio dos empobrecidos?
Diante das mensagens natalinas ingênuas e/ou portadoras da ideologia do capitalismo, como desejar prosperidade, algo que diz respeito a crescimento econômico pessoal, sem responsabilidade social, na linha da ideologia da prosperidade, suplico a Deus, mistério de infinito amor: “Pai, perdoai-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Porém, sobre os opressores, rezo: Pai, não perdoai-lhes, pois eles sabem que o que fazem, roubam os bens que deveriam ser comuns a todos/as. Fazem isso para curtir poder, status e prazer à custa do sangue de muita gente.
Presépio Natal de Jesus pobre: Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade, BH/MG: Luta por Moradia
Ao peneirar as mensagens natalinas que recebi, me alegrei com várias e partilho algumas aqui abaixo no intuito de resgatarmos o verdadeiro e libertador sentido do Natal de Jesus Cristo.
Com Dom Hélder Câmara (1909-1999), reafirmamos: “Gosto de pensar no Natal como um ato de subversão... Um menino pobre, uma mãe solteira, um pai adotivo... Quem assiste seu nascimento é a ralé da sociedade, os pastores. É presenteado por gente ‘de outras religiões’, os magos. A família tem que fugir e assim viram refugiados políticos. Depois voltam a viver na periferia. O resto a gente celebra na Páscoa... mas com a mesma subversão... sim! A revolução virá dos pobres! Só deles pode vir a salvação! Feliz Natal subversivo!”
Provavelmente para não ser condenado à pena de morte como Jesus Cristo, um autor desconhecido nos diz: “Romantizamos o presépio, mas ele deveria ser a encarnação da denúncia. Nasce uma criança jurada de morte pelos poderosos. Portas fechadas nas propriedades dos abastados. Ausência de teto para uma família empobrecida. Ausência de leito para uma mulher dar à luz. O que sobra é um insalubre lugar onde ficavam os animais. O fedor do esterco, os ratos que corriam pelas madeiras do telhado. A criança que sai da segurança do útero é recebida já como sobrevivente, vulnerável. No lombo do jumento segue o caminho de tantos refugiados. Império infanticida manda sua polícia matar as crianças, tentando assim abortar a voz de uma vida dedicada à justiça. Mas há fuga. Há resistência. Há desobediência.”
Ao lado de uma fotografia de Jesus, um chargista anônimo, talvez para não assanhar perseguição sobre si mesmo, alerta: “Pô gente, acorda! Não morri só para salvar vocês, mas porque incomodei o sistema opressor”. Que beleza uma charge sobre os Magos visitando Maria com o menino no colo: Padre Júlio Lancellotti distribuindo solidariedade libertadora, um Sem Terra distribuindo alimentos saudáveis para amenizar a fome que golpeia mais de 22 milhões de brasileiros e uma enfermeira do SUS aplicando vacinas contra a covid-19, inclusive nas crianças.
Que maravilha em uma Comunidade Quilombola uma árvore de Natal feita com mandiocas, bananas e adereços simples! “Há presépios que são construídos todos os dias do ano”, onde estão Maria grávida ou com uma criança recém-nascida no colo e José, homem justo, ao lado sendo companheiro. Ou: “Todos os dias, em algum lugar do mundo, o presépio está vivo.” “É contraditório comemorar o nascimento de Jesus, uma criança refugiada, e querer imigrantes longe do seu país.” Inspirador também foi e sempre será participar de uma vigília de Natal em uma Ocupação onde mães com crianças e pais, na iminência de serem despejados, lutam aguerridamente por moradia, pão e dignidade.
CEBI, CEBs, MST /MNPR: " Somos um Povo que quer Viver". Quilombo Campo Grande, MST, Campo do Meio/MG
Amar o/a próximo/a como Jesus amou, sem discriminar ninguém, sem exceção, nem por ser do grupo LGBTQIA+, espírita, do candomblé ou da umbanda. E jamais armar o próximo como os milicianos, eis a mensagem fundamental do subversivo Jesus de Nazaré que se humanizou a ponto de se tornar o Cristo, nosso Senhor e Salvador. Esta mensagem anima e fortalece a luta pela construção do Reino de Deus aqui e agora, no meio de nós, a partir dos preferidos de Jesus, os empobrecidos! E é com esse propósito que se pode falar de um ano verdadeiramente novo, (re)construindo a esperança que brota das lutas populares e massivas!"
Frei Gilvander Moreira |
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