sábado, 19 de fevereiro de 2022

" A Régua das Regras"

Não faças aos outros o que você não quer que seja feito a você.”.

                                                                                Confúcio                                                                    

No mundo das artes, às vezes as criaturas se tornam mais conhecidas do que seus criadores. Na literatura, temos vários exemplos deste fenômeno. Bram Stoker contou a história do nobre romeno que vivia eternamente ao beber o sangue de suas vítimas – e Drácula entrou definitivamente para a mitologia moderna. Mary Shelley elaborou a história do cientista que brincou de Deus e deu vida a um ser formado por pedaços de cadáveres – e Frankstein tornou-se outro mito moderno. Para passar o tempo no consultório que vivia sem clientes, Conan Doyle escreveu sobre um homem excêntrico que solucionava crimes por meio da inteligência e da lógica, e Sherlock Holmes tornou-se tão famoso que muitas pessoas acreditavam que a personagem existia em carne e osso.

Stoker, Shelley e Doyle certamente não são famosos como os personagens que criaram. Em épocas mais recentes, o cartunista Bill Watterson pode ser colocado nesta lista. Ele é o criador de “Calvin e Haroldo”. As histórias em quadrinhos da dupla eram permeadas de reflexões sobre a condição humana pela ótica do menino de cabelo espetado e seu fiel amigo de pelúcia, e ganharam milhões de fãs ao redor do mundo. Eu sou um destes fãs.

Dentre as inúmeras brincadeiras que Calvin e Haroldo faziam estava a “Calvinbola”. Era um jogo onde a única regra era não ter regra. A cada lance, a cada momento, os participantes do jogo poderiam mudar a regra da maneira como bem desejasse. Se um dos jogadores decidisse carregar a bola com as mãos, imediatamente o jogador adversário poderia decidir que segurar a bola impedia o outro jogador de andar, que então decidia que poderia se movimentar saltando... enfim, as regras mudavam a todo momento, indefinidamente, sem acordo prévio entre os participantes.

A “Calvinbola” sempre tinha o mesmo resultado: briga e total impossibilidade do jogo chegar ao final, porque a regra para decidir o vencedor poderia mudar a qualquer instante. Enfim, o jogo sempre terminava no caos, na mais absoluta desordem.

A “Calvinbola” era um dos meus momentos prediletos das tirinhas de Calvin e Haroldo. De uma maneira simples e genial, o autor mostrava a importância das regras e o quanto as regras precisam ser obedecidas pelo bem comum. Caso contrário, apenas a lei da violência que imperaria. Sem regras, a sociedade viveria em uma eterna “Calvinbola”, e provavelmente ainda estaríamos no fundo de cavernas, com baixíssima expectativa de vida, lutando pela sobrevivência contra predadores mais ágeis e fortes.

Regras e leis são essenciais para estruturação da sociedade. Mas ao mesmo tempo que a casca da semente precisa ser firme o suficiente para protegê-la, não pode ser tão rígida que impeça o seu florescimento. Assim devem ser as leis, que precisam de mecanismos para serem reavaliadas periodicamente, de maneira a evitar que impeçam a evolução da sociedade. Porque o ser humano muda, e com o ser humano mudam as sociedades.

E grandes crises na História foram causadas, justamente, por leis que validaram um determinado tipo de comportamento ou ação, mas que não mais retratavam as mudanças que os integrantes da sociedade desejavam. Um exemplo clássico foi a escravidão. Durante séculos, a dominação forçada de povos inteiros por outros povos foi algo considerado normal, e uma atividade econômica bastante rentável. À medida que a sociedade foi evoluindo, a escravidão lentamente passou a ser considerada uma atividade abominável, e é amplamente rejeitada pela maioria esmagadora da sociedade, o que suscitou mudanças nas leis ao redor do mundo.

Com que medida, portanto, poderíamos avaliar se e quando uma lei precisa ser mudada?

Confúcio, filósofo chinês que viveu entre os anos 551 e 479 a.C., nos concedeu uma medida muito precisa sobre como podemos analisar a equanimidade de uma lei, regra ou comportamento: se eu não gosto ou não quero que algo seja feito a mim, não posso desejar que isto seja replicado para os outros. Simples, genial e profundo.

Se eu não gosto que me forcem a realizar trabalhos sob o risco de sofrer violências físicas ou emocionais, eu não posso fazer ou desejar que outras pessoas sejam forçadas a isso. Se eu não gosto que me roubem, não posso cometer roubos. Se não gosto de ser discriminado por minhas crenças religiosas, não posso discriminar ou permitir que outros sejam discriminados por suas próprias crenças. Se não gosto que os atos alheios coloquem em risco a minha vida, não posso agir de forma a colocar em risco a vida dos outros.

O ensinamento de Confúcio nos permite perceber que leis e regras são adequadas quando geram e fortalecem a equanimidade e a igualdade. Qualquer lei ou comportamento que gere e valide a discriminação, sofrimento, o privilégio ou o dano moral ou material a outros deve ser revista, porque fere o princípio que deveria nortear não apenas a elaboração de uma lei, mas a avaliação de seu benefício para a sociedade: a garantia da igualdade para seus integrantes.

As leis são a base da Justiça, e estas leis não podem apoiar que os pratos da balança fiquem sempre a favor de um determinado grupo. A garantia da igualdade serve para garantir que o grupo possa continuar existindo harmoniosamente. Imagine o que aconteceria com o futebol, por exemplo, se apenas o Messi ou o Cristiano Ronaldo pudessem pegar a bola com as mãos. Rapidamente, o esporte iria se deteriorar, pois a validação deste privilégio provocaria reações que alterariam a harmonia do jogo, pois a igualdade de ações entre os jogadores seria quebrada.

E este é o principal desafio para que a regra de Confúcio seja implementada. Para que eu não faça uma ação contra alguém que eu não gostaria que fizessem contra mim, preciso inicialmente reconhecer que o outro é igual a mim. Preciso reconhecer que ele é um ser humano. Que possui sentimentos, expectativas, medos, sonhos, crenças e costumes tão válidos quanto os meus. Preciso acolher a ideia de que o outro é tão importante quanto eu mesmo e minhas próprias ações. Preciso reconhecer o valor do outro, a ponto de perceber no outro um pedaço de mim.

Se não há o reconhecimento do valor, da importância e da humanidade do outro, é absolutamente impossível que a regra de Confúcio seja aplicada.

Por isto que leis e comportamentos que geram sofrimento ou perseguição tem, em sua essência, a “superioridade”. Eu sou superior a você; logo, posso fazer com você coisas que eu não faria com um “igual”, ou que eu não permitiria que fossem feitas a mim. 

E a minha superioridade pode ser racial, religiosa, econômica – isto não importa. O que importa é que, face a esta superioridade, posso permitir que você seja ferido, explorado, violentado, pois você é inferior e, portanto, pode passar por situações que eu não quero passar ou que alguém que considero igual a mim vivencie.


Transformar as pessoas e seres vivos em meros objetos ou seres inferiores não apenas impede a aplicação da regra de Confúcio. Com a minha “superioridade”, posso justificar as minhas ações sem que isto cause danos à minha consciência. Por isto que regimes totalitários investem tanto em comportamento discriminatórios contra grupos ou indivíduos, inferiorizando-os. É a forma mais fácil de justificar a violência.

Há mais de mil anos que Confúcio nos ensinou uma regra que, se fosse aplicada, talvez eliminasse centenas de outras que existem simplesmente porque não reconhecemos o valor do outro, e porque não dizer, o nosso próprio valor. Este reconhecimento profundo do valor da vida, seja nossa e dos demais seres que estão à nossa volta, é a base para que alcancemos a característica que efetivamente nos leva a praticar com os outros o que desejamos a nós mesmos: a Empatia.


Maurício Luz

Maurício Luz escreve a Coluna "Frases em Nosso Tempo", aos sábados para O Guardião da Montanha.

Ele é carioca e ganhou prêmios:

1º Belmiro Siqueira de Administração – em 1996, na categoria monografia, com o tema “O Cliente em Primeiro Lugar”. 

E o 2ºBelmiro Siqueira em 2008, com o tema “Desenvolvimento Sustentável: Desafios e Oportunidades Para a Ciência da Administração”..

Ex-integrante da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Conselho de Administração RJ. 

Com experiência em empresas como SmithKline Beecham (atual Glaxo SmithKline), Lojas Americanas e Petrobras Distribuidora, ocupando cargos de liderança de equipes voltadas ao atendimento ao cliente.

Maurício Luz é empresário, palestrante e Professor. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997). 

Mestre em Administração de Empresas pelo Ibmec (2005). Formação em Liderança por Condor Blanco Internacional (2012). 

Formação em Coach pela IFICCoach (2018). Certificado como Conscious Business Change Agent pelo Conscious Business Innerprise (2019). 

Atualmente em processo de certificação em consultor de Negócios Conscientes por Conscious Business Journey.

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