Por frei Gilvander Moreira
“Que tipo de utopia os camponeses e camponesas Sem Terra cultivam e se nutrem na luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana? Não pode ser a simples estatização de todas as propriedades rurais. Também não pode ser qualquer tipo de socialização da terra. Há de se considerar as diversidades culturais, regionais, históricas e de identidades do campesinato. A autonomia dos Sem Terra, sujeitos sociais coletivos que lutam pela terra no campo, se torna impossível sem a autonomia dos sujeitos individuais, isto é, das camponesas e dos camponeses Sem Terra que se comprometem em tal luta. Logo, toda e qualquer posição pessoal ou dos movimentos sociais populares, relação interpessoal ou social, que cerceia o processo de autonomização obstaculariza a emancipação pessoal e social, que é um grande objetivo da luta pela terra como pedagogia de emancipação humana. Não nos referimos aqui à autonomia no sentido de poder fazer o que quiser, mas no sentido de fazer história com as próprias mãos desenvolvendo o infinito potencial de humanização existente em cada ser humano.
Ao explanar sobre as necessidades pessoais, Karl Marx estabeleceu a prioridade da satisfação das necessidades materiais objetivas em relação às necessidades espirituais, mas observamos que o povo tem tanta fome de pão - necessidade material (base da vida) - quanto fome de Deus – necessidade espiritual. Óbvio que Marx não se referia à necessidade espiritual no sentido religioso, mas no sentido de tudo o que é simbólico – sonhos, autoestima, desejos, aspirações etc. -, para além da base material da vida. Não dá para relegar as necessidades espirituais/simbólicas para segundo ou terceiro plano e muito menos ignorá-las. Não é inquestionável a afirmação segundo a qual ‘religião, futebol e política não se discutem’. Muitas vezes, as pessoas brigam mais por questões religiosas do que por questões estritamente políticas, até porque toda questão religiosa é também uma questão política. Nesse sentido, o pensador Ovidio Hernández fez referência a Abraham Maslow, que elaborou uma teoria sobre as escalas de necessidades humanas, assim raciocinando: “Ele coloca, de forma geral, a prioridade da satisfação das necessidades de sobrevivência (alimentação, proteção física etc.); Num lugar intermediário, situa a satisfação das necessidades de autoestima (a importância da consideração, do respeito, da pertença e da identidade na esfera individual e social, e o amor aos outros e a si próprio) e considera que, nestas bases de sustentação, desenvolvem e satisfazem, entre outras, as necessidades superiores de autonomia e autorrealização” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 132).
Há uma íntima relação entre as necessidades materiais – necessidades de sobrevivência (alimentação e proteção física; aqui se coloca a moradia, acesso à terra, por exemplo) -, as necessidades de autoestima – consideração, respeito e cultivo da identidade pessoal e amor aos outros e a si mesmo – e as necessidades superiores de autonomia e de autorrealização. Concordamos com o pensador Jorge Acanda e com Abraham Maslow no sentido de que não há como realizar e desenvolver a autonomia pessoal e social e construir autorrealização sem atendimento às necessidades básicas elementares materiais e de autoestima. Aqui está um ponto central da luta pela terra, porque se trata de uma luta concreta que viabiliza o atendimento, primeiro, das necessidades básicas de alimentação, pelo plantio nas terras ocupadas; em seguida, a autoestima das camponesas e dos camponeses Sem Terra, nas ocupações em luta pela terra melhora gradativamente, porque as pessoas passam a ser consideradas, acolhidas e respeitadas na sua dignidade. Esse caminho se aproxima da conquista da necessidade mais ampla, que é a de emancipação e autorrealização.
Na madrugada do dia 21 de dezembro de 2003, no município de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte, MG, após três anos de acampamento ao lado de uma estrada, ao lado de uma fazenda improdutiva, vinte famílias ocuparam uma propriedade de 154 hectares, sendo 14 hectares de capim e o resto Mata Atlântica. Alugaram um trator de um camponês da região e araram a terra dos 14 hectares de capim. As vinte famílias trabalharam três dias e três noites ‘sem parar’ plantando os 14 hectares de terra com sementes de hortaliças, porque as crianças estavam anêmicas e tinham que obter alimento o mais rápido possível. “Nossos filhos estavam anêmicos, mas foi só começarem a comer os alimentos produzidos com adubação orgânica e agroecológica, graças a Deus, estão todos bem nutridos, o que é atestado pela Pastoral da Criança”, informou-nos, feliz da vida, dia 22 de setembro de 2007, a Sem Terra Valéria Antônia Silva Carneiro, assentada no Assentamento Pastorinhas desde 2006.
Na luta pela terra, pelo menos em parte, contempla-se o que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) anunciou, em 1995, como sendo as quatro aprendizagens básicas: aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a fazer e aprender a ser (DELORS, 2010, p. 31), mas, atenção! Aprender sempre tomando-se por base os sujeitos injustiçados, valorizando suas experiências, problematizando a realidade sempre desde a perspectiva dos Sem Terra, eliminando a hierarquia entre os saberes, incentivando a criatividade e a compreensão de que o outro que está na horizontalidade não é um inimigo, mas alguém sem o qual não posso me emancipar e nem autorrealizar.
A luta pela terra como pedagogia de emancipação humana realiza, em alguma medida, o que apregoou Giulio Girard: “É, essencialmente, quebrar a comunidade educativa que traduz a sociedade de dominação para criar uma que anuncie a sociedade da autogestão. A educação libertadora deve, portanto, superar primeiro a relação autoritária entre educadores e alunos. Não suprime a autoridade, mas transforma radicalmente seu significado. [...] substituirá as motivações tradicionais baseadas na competição, no individualismo e no egoísmo, motivações de outra ordem que se baseiam na generosidade, no espírito de equipe e na solidariedade com os oprimidos. [...] a educação libertadora é iluminada por essa busca de sentido” (GIRARDI, 1998, p. 54-55).
A luta pela terra constitui-se, portanto, como pedagogia de emancipação humana por vários aspectos. Primeiro: nela, a reflexão é feita sempre no sentido de compreender a sociedade existente como sendo uma construção histórica capitalista, de classes com interesses antagônicos, em que a classe trabalhadora e o campesinato são injustiçados. A dominação é questionada teoricamente e na prática. Segundo: a regra geral é cuidar para que posturas autoritárias não apareçam e se surgirem devem ser questionadas imediatamente. Isso anima o potencial humano existente em todas as pessoas. Terceiro: ciente de que disciplina e autoridade são necessárias na luta pela terra, sempre é alertado para que o exercício da autoridade não descambe para o autoritarismo, nem para o personalismo, nem para o messianismo, nem para o populismo. Quarto: deve-se cultivar o espírito de solidariedade e de ajuda mútua, o que é um antídoto ao individualismo apregoado pela ideologia dominante na sociedade. Assim, a luta pela terra compreende uma práxis social sendo uma unidade inseparável de reflexão e ação”.
Referências
ACANDA, Jorge Luis. Luces y sombras, la apropiación de Gramsci en Cuba en el último decenio. In: Hablar de Gramsci. La Habana: Centro Juan Marinello, 2003.
___. Sociedad civil y hegemonía. La Habana: Centro Juan Marinello, 2002.
DELORS, Jacques et alii. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Brasília, UNESCO, 2010.
GIRARDI, Giulio. Por una pedagogía revolucionaria. In: Caminos, vol. I. La Habana, 1998.
HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.
Assista os vídeos abaixo:
Visão panorâmica da Mata do Jd. América em BH/MG. Lutamos por Preservação INTEGRAL da Mata. SOS MATA
“Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”.
Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3
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Culto de Resistência na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta!
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Fonte: frei Gilvander Moreira
Frei Gilvander Moreira |
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