Frei Gilvander |
Artigo: Por Gilvander Moreira
“O povo que sabe da importância de cuidar da cultura e da memória do
nosso país foi tomado por uma grande indignação no dia 25 de
setembro de 2019 com a exoneração da Superintendente do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em
Minas Gerais, a museóloga Dra. Célia Corsino, por meio de
portaria assinada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. A
museóloga Célia Corsino tem mais de 30 anos de carreira na proteção
de patrimônio e atuava como superintendente desde 2015. Para
perplexidade de todos e todas que se preocupam com a proteção ao
patrimônio em Minas Gerais e no Brasil, foi nomeado para o cargo um
desconhecido da área patrimonial e cultural, Jeyson Dias da Silva,
ex-assessor de um vereador em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira,
indicado pelo deputado federal Charlles Evangelista
(PSL-MG), partido do presidente Jair Bolsonaro. O
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) é uma autarquia federal atualmente vinculada ao Ministério
da Cidadania que responde pela preservação do Patrimônio
Cultural Brasileiro. É
importante lembrar que a autarquia era antes vinculada ao Ministério
da Cultura, que foi fundido pelo (des)governo Bolsonaro no
início de 2019 com os Ministérios do Esporte e do Desenvolvimento
Social na estrutura “Frankenstein” do recém criado Ministério
da Cidadania.
Seguindo
a linha de aniquilamento da política de proteção do meio ambiente
e das instituições afins, desrespeitando os processos de demarcação
de terras dos povos indígenas, quilombolas e demais direitos dos
povos tradicionais – protegidos pela Constituição de 1988 e
também pela Convenção 169 da OIT1,
da ONU2 -,
incentivando conflitos e perseguição às lutas camponesas,
movimentos por habitação, intolerância às comunidades LGBTqia+ e
aos movimentos sociais e ambientais em geral, foi lançada agora mais
uma cartada fatídica desse (des)governo: atacam a cultura e a
memória de forma descarada com a clara desestruturação do IPHAN,
instituição federal com 82 anos de história, criada em 1937, que
responde pela preservação e proteção do patrimônio cultural
brasileiro, com a substituição de seus experientes superintendentes
por pessoas sem qualquer idoneidade técnica e cientifica. A
Constituição Brasileira de 1988 reiterou a importância deste tema
enquanto política primordial, quando, no artigo
216, definiu
o patrimônio cultural de forma ainda mais detalhada, como formas de
expressão, modos de criar, fazer e viver. São reconhecidas como
memória nacional as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e,
ainda, os conjuntos
urbanos e
sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico. Ainda nos
artigos 215 e 216 da
Constituição de 1988 foi
reconhecida a existência de bens culturais de natureza material e
imaterial ou intangível, além de estabelecer as formas de
preservação e acautelamento desse patrimônio, por meio do
seu registro, inventário e tombamento.
Por seu turno, em nível internacional, o IPHAN também é o
responsável pela conservação, salvaguarda e monitoramento dos bens
culturais brasileiros inscritos na Lista
do Patrimônio Mundial e
no Rol do
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade,
conforme normas da UNESCO3,
respeitando a Convenção
do Patrimônio Mundial de
1972 e a Convenção
do Patrimônio Cultural Imaterial de
2003, além de seguir as inúmeras Cartas e Recomendações
Internacionais e Nacionais análogas das quais o país é signatário.
A mencionada
exoneração da Superintendente do IPHAN em Minas Gerais seria assim
somente a “ponta do iceberg”, já que nas últimas semanas se
seguiram destituições em outros estados estratégicos como Goiás,
Distrito Federal e Paraná, desrespeitando os critérios exigidos
para a função de superintendência regional, tais como: idoneidade
moral, reputação ilibada e perfil profissional compatível com o
cargo. Certamente, tais orientações não foram aplicadas para a
nomeação dos novos superintendentes e muito menos houve diálogo
com a comunidade. Para além da perplexidade, houve reação de
muitos segmentos da sociedade, sobretudo de profissionais da área do
patrimônio cultural, comunidades tradicionais, grupos e agentes
culturais, prefeitos de cidades históricas e até mesmo do
Ministério Publico. Muitos outros superintendentes nos outros
estados estão na corda bamba, dependendo de indicações de
políticos da base governista e da correlação de força das “danças
das cadeiras”- um jogo sórdido que vem se instalando nas
autarquias, em geral.
Em Goiás, o
Ministério Público reagiu de forma atenta e eficaz, recomendando ao
ministro da Cidadania, que torne sem efeito a portaria que nomeou
Allysson Cabral para o cargo de superintendente regional do IPHAN de
Goiás. Tal documento foi assinado por procuradores da República em
Goiás e por membros da Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio
Histórico do Ministério Público Federal (MPF – 4CCR). No texto,
ainda alegam que o indicado não possui perfil e formação adequados
para o cargo e que a nomeação não atende ao interesse público e à
legislação, configurando desvio de finalidade. Informam que quem o
indicou foi o deputado federal Professor Alcides (PP-GO), que admitiu
em entrevista que houve mesmo um sorteio entre os deputados federais
goianos da base aliada do governo para definir quem indicaria o
superintendente regional. Pelo sorteio, a indicação coube ao
próprio deputado. O deputado ainda teria afirmado que o seu
designado não teria formação, tampouco experiência para o cargo,
mas que seria alguém de sua confiança, o que seria suficiente para
motivar tal nomeação.
Minas Gerais
(e aqui são lembrados os municípios de Ouro Preto, Congonhas,
Diamantina, Mariana, Serro, Paracatu, Caeté, entre outros), Brasília
e Goiás têm muito em comum, pois possuem sítios históricos e
arquitetônicos inigualáveis, alguns deles com o título de
Patrimônio da Humanidade, chancelado pela UNESCO/ONU, e possuem
também conjuntos e bens isolados tombados em nível federal. O
título de patrimônio da humanidade indica se tratar de ambientes de
interesse global, fundamentais para a memória da humanidade, cujas
políticas de gestão não devem ser restritas aos países onde os
sítios se situam.
Tal status pode arrebanhar muita verba e recursos
em nível internacional.
Mas por que
mesmo emperrar e controlar a atuação do IPHAN? O que está por trás
desta rede de manipulação e desmantelamento também desta
instituição? Em Minas Gerais (como na região amazônica e outros
estados), há inúmeros sítios históricos arqueológicos,
paisagísticos e hídricos de grande importância em localidades
ambicionadas e ameaçadas por mineradoras, indústrias e pelo
agronegócio. Muitos sítios de grande valor se encontram em terrenos
de propriedade de mineradoras ou em áreas de decreto de lavra, cuja
proteção deveria ser severamente fiscalizada e garantida pelos
órgãos patrimoniais nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Vale lembrar o caso das comunidades das antigas vilas históricas
Socorro e Congo Soco, município de Barão de Cocais, MG, retiradas
de seus lugares de vida e de memória em função do alegado risco
iminente do rompimento da Barragem Sul Superior da mineradora
criminosa Vale. Estes territórios, caso a comunidade seja retirada
em definitivo da sua localidade de origem, serão apropriados para
domínio e expansão territorial e de exploração futura de empresas
mineradoras. Outra situação que merece atenção é o caso fatídico
e inaceitável da vila colonial Bento Rodrigues, pertencente ao
município de Mariana, em Minas Gerais, situado no vale do Gualaxo do
Norte, tributário do ex-rio Doce. Além de ter sido atingida
diretamente pela lama tóxica da tragédia-crime da Samarco, BHP
Billiton e Vale, oriunda do rompimento da barragem Fundão, com a
conivência do Estado em 05 de novembro de 2015, ainda foi vitimada
covardemente pela segunda vez, um ano depois, pelo alagamento parcial
da barragem ou dique S4 que ali foi instalado – apesar dos inúmeros
questionamentos feitos na ocasião pelo IPHAN de MG e pelos antigos
procuradores da força-tarefa (“Lama Nunca Mais”) do Ministério
Público de Minas Gerais (MPE/MG). Porém, com a tarja de “obra
emergencial”, as mineradoras rés conseguiram, de forma muito
questionável, a autorização para tal obra; o que pode ser
comprovado se analisarmos atentamente a argumentação de memorandos
e ofícios que constam no processo de referência no IPHAN de
Brasília. Felizmente, parte dos atingidos de Bento Rodrigues,
conscientes de seu território, de sua história e de seus direitos,
têm resistido bravamente às investidas e manipulações das
empresas criminosas, cujos interesses estão ocultados pela
“Fundação” Renova (muitas vezes, com a cega conivência do
poder público municipal, estadual e Ministério Público atual em
seus diferentes âmbitos) reagindo de forma heroica a propostas e
termos de ajustes que os condicionam à desapropriação de suas
terras, que visam, no fundo e ao cabo, a apropriação do sítio de
Bento Rodrigues por parte das mineradoras e de demais interesses
econômicos e políticos escusos. A mineradora Herculano, que já foi
responsável por um crime/tragédia ambiental de grandes proporções
em setembro de 2014 com o rompimento de barragem de rejeito no
córrego Silva, vale do rio Itabirito, MG, afluente do rio das
Velhas, que ocasionou a morte de dois dos seus trabalhadores, insiste
de forma perniciosa em se instalar no município de Serro, MG, em
localidade que abrange reserva hídrica, além de um território
histórico e sagrado de comunidade quilombola tradicional. São
tantos os exemplos de desrespeitos, injustiça social e racismo
ambiental que daria para tecer uma grande lista, mas ficam aqui estas
revoltantes situações.
Outra questão
muito emblemática em Minas Gerais e bastante preocupante se refere à
proteção da magnífica Serra da Piedade situada no município de
Caeté, também tombada em nível federal e em outras esferas,
ameaçada severamente por interesse de mineradoras que pretendem
obter a conclusão de licença para ali operar. Embora tendo o IPHAN,
o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais (IEPHA), o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a
Secretaria de Meio Ambiente de MG (SEMAD) o dever e o compromisso
histórico de cuidar e de zelar por este patrimônio, dia 22 de
fevereiro de 2019, contra parecer do IBAMA, do IEPHA e do IPHAN, a
maioria dos conselheiros da Câmara de Atividades Minerária do
Conselho de Política do Meio Ambiente (COPAM) do Governo de Minas
Gerais forneceu licença inconstitucional, injusta e imoral para
reabrir mineração nesta localidade. O superintendente do IBAMA em
MG, Júlio Grillo, foi exonerado no dia seguinte por ter se
posicionado contra a retomada da mineração na Serra da Piedade. O
licenciamento ambiental para reabrir mineração na Serra da Piedade
ficou dependendo apenas da posição do IPHAN e IEPHA. Tal fato deixa
claro que com um superintendente vassalo da política devastadora do
meio ambiente do (des)governo federal, podemos esperar que em breve
ele mudará o parecer expedido pela superintendente exonerada que
tinha se posicionado contra a retomada da mineração na Serra da
Piedade, posição justa, ética e necessária. A Serra da Piedade é
responsável por parte significativa do abastecimento d’água de
Belo Horizonte e região metropolitana (RMBH), que já perdeu o Rio
Paraopeba (morto pela Vale e pelo Estado na tragédia/crime em
Brumadinho em 25 de janeiro de 2019), que era responsável por 50% do
abastecimento da RMBH. Está ainda inserida em unidades de
conservação (Área de Proteção Ambiental (APA)), Águas da Serra
da Piedade, Monumento Natural Estadual Serra da Piedade (MONAE) e nas
Reservas da Biosfera da Serra do Espinhaço e da Mata Atlântica,
integrando ainda por sua relevância o cadastro nacional dos Sítios
Geológicos e Paleontológicos do Brasil (SIGEP).
Aproxima-se
a ocasião do Sínodo da Amazônia, no qual o papa Francisco,
inegável ícone da paz e da justiça socioambiental, e os bispos de
nove países da Amazônia vão
discutir como proteger as populações nativas e o riquíssimo
conjunto ambiental e cultural da região amazônica. Espera-se que
este importante debate contribua de forma eficaz e que influencie
movimentos e programas internacionais que possam fortalecer para além
da Amazônia a proteção de biomas e de todos os povos
ameaçados em seus territórios, injustiçados, expulsos de suas
terras, torturados e assassinados nos conflitos agrários e
socioambientais, humilhados pelos poderosos do agronegócio e dos
grandes projetos econômicos desenvolvimentistas, em especial a
mineração, que tem massacrado tantas comunidades em Minas Gerais e
tirado a vida e a saúde de tantas pessoas, além de matar e
envenenar os rios Doce e Paraopeba.
Constata-se
que o projeto de Jair Bolsonaro e de sua equipe de destruir a
política cultural no país segue firme e a galope no Congresso
Nacional, que prevê no projeto de Lei Orçamentária enviado para o
ano que vem (2020) uma redução de aproximadamente 72% de recursos
que a área recebe atualmente. Tais cortes e as restrições de
qualidade técnica em seu quadro de gestores vão comprometer
drasticamente a proteção de milhares de sítios históricos, bens
móveis e imóveis, como também programas de pesquisa, proteção e
de registro do patrimônio imaterial, de saberes e de fazeres
tradicionais de vários povos e comunidades.
O que nos
acalenta é que mesmo frente a todo este plano pérfido arquitetado
que se revela, nada poderá destruir o soar dos corações ancestrais
dos povos tradicionais, seus lugares, sítios milenares, memórias
que fluem por gerações, sonhos e territórios. Histórias de
resistência, força e luta que seguem. Em nome da nossa
responsabilidade geracional urge crescer a luta popular para
revertermos os descalabros do (des)governo de plantão no nosso país.
Povos que não cuidam da sua cultura e memória estão matando seu
próprio futuro. Felizes as pessoas e organizações que não medem
esforços para resgatar e cuidar do seu patrimônio histórico e
cultural. Maldito quem violenta a cultura e a memória de um povo!”
Sobre
o autor: Frei
e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP;
mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e
Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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