Por Marco Aurélio, SAPO 24
"Na semana do Dia de Reis, fui procurar palavras que o português recebeu da língua persa. Aqui ficam dez exemplos, de «açúcar» a «mago».
Os Três Reis Magos são figuras que a tradição foi construindo a partir de uma descrição, na origem, muito sucinta — os relatos bíblicos não nos dizem que eram três e nem sequer dizem, na verdade, que eram reis. As histórias são assim, começam num sopro e acabam em intrincados relatos transmitidos de geração em geração.
Pelos séculos fora, houve quem dissesse que os Reis Magos vinham da Pérsia — noutras versões, só era persa o rei a que chamamos Melchior.
De uma maneira ou de outra, neste Dia de Reis, lembrei-me de olhar para a língua persa e procurar alguns dos presentes que deu à nossa língua.
1. Açúcar
Não é mirra, nem ouro e muito menos incenso, mas faz parte do Natal, de tal maneira que as balanças de Janeiro têm de aguentar uns quilos a mais.
A palavra entrou nas línguas europeias a partir do árabe «as-sukkar», por duas vias: a via italiana, que levou a palavra até ao francês e ao inglês (entre outras), e a via ibérica, que nos deu a nossa palavrinha «açúcar».
Ora, os árabes também já tinham ido buscar esta doce palavra ao persa, onde era «šakar». Como estas histórias parecem não ter fim, diga-se que a palavra persa tem uma origem mais remota: o sânscrito «śárkarā».
2. Laranja
Há mais alimentos com nomes de origem persa, que fizeram o mesmo caminho até ao português: «laranja», por exemplo, veio da «nārang» persa, passando pelo árabe (e, tal como no caso do açúcar, também já tinha vindo do sânscrito).
Também o «limão» veio do árabe «laymūn», que tinha vindo do persa «limu».
3. Pato
O pato fez o mesmo caminho: do «bat» persa, passou ao «baṭṭ» árabe, que na nossa península se transformou no «pato».
Todas estas palavras que passam pelo árabe fazem um caminho peculiar: o persa é uma língua indo-europeia; empresta palavras a uma língua de outra família, o árabe, que depois as devolve a idiomas da mesma família da origem. Ou seja, o árabe é como o amigo que anda a transportar prendas entre irmãos que vivem longe uns dos outros. Neste caso, as prendas são palavras.
4. Xadrez
Uma das prendas do meu filho, este Natal, foi um tabuleiro de xadrez. A palavra começou no sânscrito, de onde passou ao persa, onde se dizia «šatrang», que a emprestou ao árabe, na forma «aš-šaṭranj», que a ofereceu às línguas ibéricas, acabando no nosso «xadrez».
Estas transformações profundas das palavras, ao saltar de língua, mostram como a viagem se faz de muitas conversas, onde as palavras são ouvidas e, depois, repetidas com os sons da nova língua — e ainda mastigadas pelas gerações. É um jogo do telefone pela história fora.
As palavras que aqui vemos acompanham o que representam. Imaginemos um jogo de xadrez na antiga Andaluzia, entre um viajante do Oriente, que conhece as regras, e um moçárabe, que tenta repetir a palavra o melhor que pode aos amigos, já com os sons da sua língua latina. O jogo fica — e a palavra também.
5. Cheque
Já que falamos de xadrez, diga-se que «xeque» e «xeque-mate» também são de origem persa — e, por acaso, «cheque» (de dinheiro) também.
Tal como «xeque», a palavra financeira tem origem no nome da peça do rei no xadrez, num caminho que inclui o latim, o francês e o inglês, o que explica por que razão, neste caso, a palavra começa com outra letra. Aliás, no princípio de «cheque» vemos o eco da palavra persa para rei, «šâh», que todos conhecemos quando nos lembramos do Xá da Pérsia.
Como é que de rei chegámos a cheque (documento)?
Há caminhos sinuosos nestas viagens. O inglês foi buscar «check» à palavra do francês antigo para xeque do xadrez («eschec», palavra que viera do latim, que a fora buscar ao persa). O inglês deu-lhe um significado mais genérico, relacionado com «verificação», por ser o momento em que, no xadrez, é preciso verificar a posição do rei.
Além do nome «check» (verificação) e do verbo «to check» (verificar), a palavra acabou por dar nome ao documento que permite verificar a legalidade e a quantia de uma transacção — com este significado mais preciso, a palavra tem duas formas em inglês: «check» e «cheque». O novo vocábulo acabou por se espalhar por outras línguas, incluindo o francês (de onde viera) e o nosso português.
6. Pijama
Uma outra prenda que algumas crianças terão encontrado na noite de Natal terá sido um pijama.
Esta palavra percorreu um caminho um pouco diferente: começou no persa «pāy-jāma», que significava «roupa para as pernas», e passou para o hindi e urdu com a mesma forma.
Na Índia, os europeus (portugueses e ingleses entre eles) encontraram este tipo de roupa nocturna e começaram a usá-la, aproveitando o nome.
Com o tempo, os ingleses trouxeram a palavra até à Europa. O inglês «pyjama» acabou por se espalhar pelas outras línguas — até chegar ao português.
7. Azul
Esta palavra tem origem no nome da pedra «lápis-lazúli», que já se minerava nas montanhas do Afeganistão há quase 10 000 anos.
O nome persa da pedra passou ao árabe, que o trouxe na forma «lāzuward» até à Península Ibérica.
Esta palavra acabou por dar origem ao «azul» com que, em várias línguas ibéricas, nos referimos à cor daquela rocha.
8. -stão
Até partes de palavras têm origem persa, como o «-stão» que termina o nome de vários países: «Afeganistão», «Tajiquistão», «Cazaquistão», entre outros. O sufixo também é útil para criar países imaginários…
Todas as línguas recebem e oferecem palavras a outros idiomas. No entanto, há línguas que são especialmente generosas, como o grego, o latim e o árabe. O persa é outra dessas línguas: ofereceu, ao longo dos séculos, palavras a várias línguas das redondezas, pela força do seu prestígio e do seu uso na literatura e na ciência.
9. Magia
A palavra «magia» veio do latim «magia», aonde tinha chegado vinda do grego «μαγεία» — que significa «a arte do mago».
Ora, a palavra grega para «mago» veio de onde? Do antigo persa…
10. Mago
Chegados à palavra «mago», aproveito para desejar um feliz Dia de Reis, que é dia de prendas aqui mesmo ao lado. Foi esta a minha prenda: dez pequenas viagens pela história das nossas palavras.
Fonte: Sapo
MARCO NEVES
Tradutor e professor. Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa e A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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