por Sylvia
Debossan Moretzsohn
Publicando primeiro
O caldo de cultura
É também uma constatação de que os filtros próprios do jornalismo estão associados a uma ética ausente nesse tipo de programa, o que deveria merecer uma atenção bem maior da que até hoje foi dispensada a esse tema, seja por parte das entidades representativas dos jornalistas, seja por parte das autoridades.
Raízes da barbárie
Desde
a virada do século, os entusiastas da expansão da internet
comemoravam a progressiva eliminação do papel mediador do
jornalismo, que tinha – e continua a ter – o compromisso de
filtrar as informações para separar fatos de boatos e oferecer ao
público uma referência de credibilidade. Pelo contrário, os
entusiastas da rede vibravam com a possibilidade de todos poderem
“comunicar” livremente. Clay Shirky, um dos mais festejados
arautos dessa nova era, defendia a inversão das regras básicas do
jornalismo e propunha “publicar primeiro e filtrar depois”:
“Redatores
submetem suas matérias [aos editores] para serem publicadas ou
rejeitadas antes que o público possa vê-las. Membros de uma
comunidade, em contrapartida, dizem o que têm a dizer, e o que tem
valor é separado do que é medíocre depois do fato” (citado por
Bowman e Willis, We Media, 2003, p. 12, grifo meu).
Uma
proposta que evidentemente só poderia ser válida para grupos
fechados e específicos passou a ser alardeada como um hino
libertário. Shirky, Bowman e Willis confiavam na capacidade de
autocorreção das informações, que lhes garantiria credibilidade,
porque “as pessoas” estariam interessadas em “compartilhar
suas histórias e publicar a verdade”.
Pelo
visto, e à parte quaisquer outras considerações sobre esse
supremo – ou, talvez, suposto – idealismo, não tinham a mais
pálida ideia de como funciona o senso comum, nem a maneira pela
qual a política move suas engrenagens no campo da comunicação.
Publicando primeiro
“Boatos
rolam na região da praia do Pernambuco, Maré mansa, Vila Rã e
Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia
negra... Se é boato ou não devemos ficar alerta” (sic).
Os
administradores da página do Guarujá Alerta no Facebook – que
depois apagaram a postagem, como se omitir o erro eliminasse suas
consequências – poderiam dizem em sua defesa que seguiram à
risca a receita do “publicar primeiro e confirmar depois”.
Afinal, “as pessoas” só estão interessadas em descobrir a
verdade. Se fosse mentira, logo contestariam a informação, não é
mesmo?
O
resultado, todos sabemos. O boato se espalhou, junto com imagens de
um retrato falado produzido pela polícia do Rio há alguns anos
para a investigação de um crime ainda sem solução. Uma mulher,
casada e mãe de duas filhas, moradora em um bairro pobre do
Guarujá, foi confundida com a suposta sequestradora, cercada e
linchada por vizinhos.
Agora, outros entusiastas da rede vêm
dizer que foi preciso ocorrer uma tragédia para descobrir o que
pode acontecer quando um boato se espalha no mundo virtual.
Naturalmente, não fizeram caso do que tanta gente, há tanto tempo,
vem escrevendo sobre isso, a partir de raciocínios elementares.
Pois não é muito óbvia a tendência a compartilhar automática e
irrefletidamente o que cai na rede? Não é mais óbvio ainda que
boatos desse tipo tendam a provocar pânico? E não é também muito
óbvio que o que cai na rede é incontrolável, exatamente pela
falta de filtros?
O caldo de cultura
Foram
muitos os que acusaram, em artigos e comentários nas mídias
sociais, o “efeito Rachel Sheherazade” no caso da mulher
trucidada no Guarujá. Como se recorda, a apresentadora da SBT criou
polêmica ao defender a ação de um grupo de jovens de classe média
que agrediram, despiram e ataram a um poste um adolescente negro
infrator, no bairro do Flamengo, no Rio, há cerca de três meses. O
argumento: se a Justiça é lenta ou omissa, os cidadãos têm o
direito de agir por conta própria.
É evidente a incitação
a ações que podem resultar em linchamentos, mas a apresentadora do
SBT não chega aos pés do que fazem sistematicamente os
apresentadores de programas policiais em sua exploração do “mundo
cão”.
O
que não se costuma considerar nessa crítica é que esses programas
respondem aos desejos de seu público, ou não teriam
audiência.
Isso não é uma justificativa: é apenas uma
desagradável constatação da simbiose de interesses entre mídia e
público, que transborda agora para o mundo virtual, onde se
multiplicam páginas de clones desses apresentadores dublês de
justiceiros.
É também uma constatação de que os filtros próprios do jornalismo estão associados a uma ética ausente nesse tipo de programa, o que deveria merecer uma atenção bem maior da que até hoje foi dispensada a esse tema, seja por parte das entidades representativas dos jornalistas, seja por parte das autoridades.
Raízes da barbárie
“Os
gestos da matilha humana reiteram milênios de preconceitos,
calúnias contra minorias, genocídios programados por dirigentes
religiosos ou políticos”, assinalou o professor Roberto Romano
em artigo
na edição de domingo (11/5)
do Estado de S.Paulo, para lembrar as origens remotas de atos como o
que ocorreu no Guarujá. Trazendo a história para o nosso tempo e o
nosso quintal, argumenta:
“A lentidão e a distância que
mantêm a Justiça longe da vida civil ajudam poderosamente a
fábrica de linchamentos em nosso país. Sem juízes que realmente
decidam em tempo certo, com base na lei, fica a tentação do
justiçamento e da barbárie”.
Longa
e permanente luta, essa de transformar as instituições para
consolidá-las e aproximá-las da vida cotidiana. Mais difícil
ainda diante do recrudescimento do nazismo, pelo mundo e mesmo no
Brasil. Tempos sombrios, como aponta o professor:
“Quem
lincha incentivado por rumores e com fundamento no preconceito pode
perfeitamente aplaudir o massacre de milhões.”
A
propósito, os defensores da “ação direta”, tática que
emergiu com força desde as manifestações de junho do ano passado,
poderiam refletir um pouco sobre isso. As causas mais puras às
vezes provocam resultados catastróficos.
Campanhas
preventivas
Na
parte final de seu livro sobre Ética, jornalismo e nova mídia
(Editora Vozes, 2009), Caio Túlio Costa anotou: “A possibilidade
de qualquer um ter nas mãos uma ferramenta de comunicação capaz
de atingir milhões de pessoas é que é inédita e por isso
espantosa”. Espantosa em vários sentidos, inclusive neste que
propicia a disseminação de boatos que resultam em tragédias e
atiçam nossos instintos mais primitivos.
Jornalistas,
pelo menos em princípio, devem obedecer ao seu Código de Ética.
Nas melhores escolas, recebem formação que lhes esclarece sobre
suas responsabilidades.
Mas o que dizer dessa multidão que atua na rede?
* Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Publicado no Observatório da Imprensa em 13/05/2014
Fonte: FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas
Ninguém
deveria ignorar que a internet não apenas reflete o comportamento
das pessoas no mundo físico, mas também os exacerba e
frequentemente os transforma devido à ausência do contato
presencial e, em muitos casos, ao conforto propiciado pelo
anonimato. Ainda assim, campanhas de alerta quanto aos riscos da
disseminação de boatos, como as que já circulam no Facebook,
poderiam ser muito úteis. De nada adiantariam contra os
interessados em promover o caos ou a barbárie, mas poderiam
reduzir-lhes o número de seguidores.
Não
custaria tentar “viralizar” à contracorrente: insistir sobre a
fonte das informações, desmontar boatos, estimular as pessoas a
refletir antes de agir, a duvidar antes de acreditar. Quem sabe, o
incentivo ao exercício da crítica possa ser capaz de reduzir o
grau de irresponsabilidade no mundo virtual e suas nefastas
consequências.
* Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Publicado no Observatório da Imprensa em 13/05/2014
Fonte: FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas
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