Os esqueletos encontrados na Lapa do Santo indicam que os povos que viviam ali eram muito mais complexos do que se imaginava - Foto:ANDRÉ STRAUSS |
Por Evanildo da
SilveiraDe São Paulo para a BBC Brasil
“São os
ossos mais antigos do Brasil e revelam que, ao contrário do que se pensava até
agora, os povos que viviam no local naquela época eram complexos e tinham
práticas funerárias altamente elaboradas.”
“A
novidade é resultado do projeto Morte e vida na Lapa do Santo: uma biografia arqueológica dos
povos de Luzia, coordenado pelos pesquisadores André Strauss, do Museu de
Arqueologia e Etnologia (MAE), e Rodrigo de Oliveira, do Instituto de
Biociências (IB), ambos da Universidade de São Paulo (USP).
É um
trabalho de pesquisa interdisciplinar, que tem como objetivo caracterizar como
viviam as populações que estavam no Brasil central durante o Holoceno Inicial
(Holoceno é o período geológico que começou há 11.500 anos e se estende até o
presente).
De acordo com Strauss, os esqueletos descobertos eram de idosos,
crianças, homens e mulheres. "Todos tinham sinais de rituais
mortuários", revela.
"Alguns
estavam queimados, outros pintados de vermelho e alguns combinavam crânios de
crianças com corpos de adultos, ou dentes de uma pessoa com a arcada de outra.
O que chamou a atenção também é que esses sinais variavam dependendo da idade
arqueológica dos ossos. Isso pode significar que os povos que habitavam a
região alteraram sua forma de tratar os corpos dos mortos ao longo do tempo.
Essa descoberta é inédita na arqueologia brasileira."
Os
primeiros americanos
A região tem dezenas de sítios arqueológicos que vêm sendo escavados e pesquisados desde 1843 |
A região onde trabalham os arqueólogos, Lagoa Santa, está entre
as mais ricas em restos de culturas pré-históricas do Brasil. Ali, dezenas de
sítios arqueológicos vêm sendo escavados e pesquisados desde 1843, quando o
naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), considerado o pai da
paleontologia brasileira, descobriu ossadas humanas misturadas com as de
animais já extintos. Desde então, centenas de crânios e outros ossos humanos
foram desenterrados do local.
Entre
eles, o mais antigo de que se tem registro no Brasil, com 11.300 anos,
descoberto em 1974, pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, no sítio
chamado Lapa Vermelha 4.
Como era
de um indivíduo do sexo feminino, o esqueleto foi batizado de Luzia pelo
bioantropólogo Walter Alves Neves, também da USP, que foi orientador de Strauss
e Oliveira, que agora dão continuidade ao seu trabalho.
Em 1995,
ele fez medidas antropométricas do crânio, que mostraram que Luzia tinha mais a
ver com os africanos do que com os índios atuais.
Com
base nisso e em outras descobertas, ele elaborou sua hipótese para a ocupação
das Américas, apresentada no livro O povo de Luzia - em busca dos primeiros americanos, em coautoria com o
geógrafo Luís Beethoven Piló.
A
hipótese propõe que os primeiros americanos chegaram ao continente em duas
levas migratórias, uma há 14 mil anos e a segunda há 11 mil, vindas da Ásia
pelo estreito de Bering. A primeira seria composta por uma população com traços
semelhante aos dos africanos e aborígenes australianos. A segunda era de
indivíduos parecidos com asiáticos e índios americanos atuais.
Ao longo
do tempo, os dois povos se miscigenaram no novo mundo.
Para
outros estudiosos, no entanto, os indígenas atuais ou ameríndios e os primeiros
que chegaram à região de Lagoa Santa fazem parte de um mesmo tipo, cujas
diferenças morfológicas podem ser explicadas pela variabilidade natural que
existe dentro de qualquer população. A pesquisas de Strauss e Oliveira poderão
ajudar a elucidar a questão.
Segundo
Strauss, o projeto segue em pleno andamento com a escavação da Lapa do Santo e
a análise do material encontrado. "Isso inclui estudos morfológicos, de
microvestígios, isótopos, datação, antropologia virtual, micromorfologia e
DNA", conta.
"Até
o momento, nossos estudos não dialogam diretamente com o tema dos primeiros
americanos. Quando sair o resultado do DNA poderemos determinar se o modelo dos
dois componentes está correto ou não."
Escavações realizadas até agora já revelaram vários aspectos dos grupos, desconhecidos até agora. Foto:ANDRÉ STRAUSS |
Práticas
funerárias surpreendentes
As
escavações realizadas até agora já revelaram, no entanto, vários aspectos dos
grupos que eram desconhecidos até agora. "Apesar das centenas de
esqueletos exumados em Lagoa Santa em quase dois séculos de pesquisa, muito
pouco foi discutido em relação às práticas funerárias na região", diz
Strauss.
"De
acordo com as poucas descrições disponíveis na literatura, elas sempre foram
caracterizadas como simples e homogêneas, incluindo apenas enterros primários
de um único indivíduo e sem nenhum tipo de acompanhamento funerário."
As
descobertas de Strauss e Oliveira mudam radicalmente esse quadro. De acordo com
eles, os sepultamentos da Lapa do Santo tinham uma alta variabilidade, o que
contradiz a visão tradicional sobre as práticas mortuárias na região.
"Além
dessa retificação histórica, a diversidade delas no local ganha relevância,
porque contraria a homogeneidade de outros componentes do sítio, tais como os
artefatos de pedra, os remanescentes faunísticos, a morfologia craniana e a
própria composição da matriz sedimentar."
Segundo
Strauss, os sepultamentos também permitem inferir que ao longo do Holoceno
Inicial grupos distintos que, possivelmente, não se reconheciam como parte de
um mesmo povo habitaram a região. "Na ausência de mais datações diretas
para os esqueletos, não é possível descartar a hipótese de que, em um mesmo
momento, diferentes povos tenham ocupado a região", acrescenta.
Simplificando,
ele diz que é possível que, durante o Holoceno Inicial, não tenha existido
"um único 'povo de Luzia'", expressão cunhada por Walter Neves para
se referir aos grupos humanos que habitaram a região de Lagoa Santa na época,
"mas sim muitos 'povos' e muitas 'Luzias', cada um único em suas
idiossincrasias simbólicas, culturais e, por que não, linguísticas".
"Assim,
o registro funerário da Lapa do Santo contribui para retratar uma pré-história
plural e dinâmica, onde a diversidade é a regra e elemento interpretativo
fundamental", diz.”
Fonte: BBC- Brasil
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