Padre Júlio Lancellotti, um profeta no meio dos
pobres colocando em prática a dimensão social
do Evangelho de Jesus Cristo.
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Por
Gilvander Moreira - Articulista às terças-feiras
Muitas
crises estão afetando as pessoas e todos os outros seres vivos que
habitam nossa Casa Comum, o planeta Terra. A crise ecológica já
acendeu o sinal vermelho há muito tempo. “O mundo está em
chamas”, já dizia, ainda no século XVI, Teresa de Jesus,
espanhola e freira carmelita, uma das três mulheres consideradas
doutoras pela Igreja. O que acontece é que do século XVI para cá,
o modo de produção industrial e os estilos de vida impostos pelo
modelo capitalista e tecnocrático têm agravado, em progressão
geométrica, os problemas socioambientais no Planeta e contribuído
para aprofundar a injustiça socioambiental. “Não brinque com
fogo”, dizia a mamãe Leontina. Tornou-se urgente interrompermos a
espiral de autodestruição da humanidade e de todo o planeta Terra.
Com
o auxílio dos omissos, dos cúmplices e dos coniventes, o
capitalismo e os capitalistas causaram – e continuam aprofundando –
a maior crise ecológica de todos os tempos. As mineradoras com
suas máquinas pesadas, cada vez mais potentes, como dragões
cuspindo fogo, dizimam milhões de nascentes d’água pelo mundo
afora e seguem demolindo montanhas, removendo terra e minerais
diversos e em seu lugar deixando profundas crateras. Grandes empresas
do agronegócio ampliam as monoculturas de eucalipto, de soja, de
café e de cana, para citar apenas algumas e, assim, deixam um rastro
de destruição nunca antes visto. O esgotamento dos solos férteis e
a poluição ou mau uso das águas representam riscos para a
segurança e soberania alimentar da humanidade. A devastação dos
biomas - Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Pantanal e
Pampas - gera processos de desertificação de territórios cada vez
maiores.
Megaempresas
do hidronegócio transformaram a água em mercadoria. Um litro de
água em alguns lugares, como aeroportos, custa um absurdo. No
mercado internacional água vale muito mais que o minério e, mesmo
assim, contraditoriamente, a ganância cega dos capitalistas não os
deixa perceber que biomas preservados nos oferecem gratuitamente
safras infinitas deste líquido vital – fonte de vida - enquanto
que o minério só é extraído uma única vez e, para sua retirada,
se promove a devastação das nascentes.
Nesse
contexto dramático, que interpela a consciência de todas as pessoas
de boa vontade, faz-se necessário resgatar a profecia do Concílio
Vaticano II e a Opção da Igreja afrolatíndia pelos Pobres e pelos
Jovens. Imprescindível ouvirmos os
clamores de todos os seres vivos injustiçados, entre os quais
encontra-se a Terra, as nascentes e toda a biodiversidade. Não
podemos tardar mais em levar a sério o testemunho e os ensinamentos
do papa Francisco na Exortação Apostólica A
Alegria do Evangelho,
nos seus Discursos aos Movimentos Sociais e na Encíclica Laudato
Si’ (Louvado Sejas!),
sobre o cuidado da Casa Comum.
O
cap. IV da Exortação apostólica do papa Francisco
A
Alegria do Evangelho
(Evangelii
Gaudium,
em latim)
trata
da Dimensão Social e Econômica da Fé Cristã. Prestemos atenção
a algumas afirmações do papa Francisco:
“Se
a dimensão social da evangelização não for devidamente
explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e
integral da missão evangelizadora” (EG n. 176). É
traição ao Evangelho de Jesus Cristo pensar que a fé cristã diz
respeito apenas à dimensão espiritual do nosso ser e existir.
O
papa Francisco puxa a orelha dos espiritualistas, moralistas e
fundamentalistas que deturpam a missão da Igreja. Diz ele em alto e
bom tom: “Prefiro
uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja
enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que
acaba presa em um emaranhado de obsessões e procedimentos” (EG n.
49).
Além
de ser pobre e para os pobres, a Igreja sonhada e gestada
por Francisco
deve
ter a coragem de denunciar o atual sistema econômico, "injusto
na sua raiz"
(EG n. 59). Como disse ,
a
Igreja "não
pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça"
(EG n. 183). "Saiam para missão transformadora!" é a
essência da mensagem que o papa Francisco está enviando aos bispos,
padres e membros das comunidades cristãs, desde o início do seu
pontificado. Saiam das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e
do caloroso círculo dos convencidos, anunciem o Evangelho nas
periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos
pobres, aos injustiçados!
Às
questões sociais, o papa Francisco dedica o segundo e o
quarto capítulos da Exortação Apostólica A
Alegria do Evangelho.
Critica o "fetichismo
do dinheiro"
e "a
ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente
humano",
versão nova e implacável da "adoração
do antigo bezerro de ouro".
Francisco critica o atual sistema econômico: "esta
economia que mata"
porque prevalece a "lei
do mais forte"
e promove a cultura do "ser
humano descartável"
que criou "algo
novo"
e dramático: "Os
excluídos, mais do que 'explorados', são considerados resíduos,
'sobras'"
(EG n. 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos
pobres, renunciando "à
autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e
atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste
–,
não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema
algum",
alerta o papa Francisco. Ele também indica que as raízes dos males
sociais estão na "desigualdade
social”.
A
Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. Papa Francisco
diz profeticamente: “A
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno,
como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado
de trabalho e criando assim novos excluídos”
(EG
n. 204). Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco dedica muitas
páginas à denúncia da "nova
tirania invisível, às vezes virtual"
em que vivemos, um "mercado
divinizado",
onde reinam a "especulação
financeira",
a "corrupção
ramificada",
a "evasão
fiscal egoísta"
(Laudato Si, n. 56).
Diante
das revelações da reunião ministerial estarrecedora, já em meio à
pandemia, ocorrida dia 22 de abril de 2020, em Brasília, fica claro
que a intenção do presidente e de ministros não é a preservação
da vida. Antes, sim, querem a garantia de privilégios de cunho
pessoal e corporativo, a continuidade de um projeto de saque dos bens
naturais e do entreguismo do patrimônio público via privatizações
ou concessões de empresas públicas como, por exemplo, o Banco do
Brasil tal como citado pelo ministro da economia na referida reunião.
Ficou claro o discurso de ódio e de insensibilidade diante do povo
que está submetido às agruras da pandemia, o saque de direitos e de
uma política econômica que privilegia os interesses dos banqueiros.
Posturas odiosas e execráveis foram vomitadas e recheadas por 37
palavrões proferidos na reunião, 29 deles pelo presidente que,
inclusive, ameaçou de forma clara e evidente trocar a chefia da
Polícia Federal para barrar investigações de familiares e amigos.
Também nos saltou aos olhos os dizeres estarrecedores de vários
ministros, entre os quais o Ministro Ricardo Salles, que, na prática,
atua contra o Meio Ambiente. Para espanto de todo o povo, Salles
disse: "A
oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco
de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de
desregulamentação, simplificação, todas as reformas ..."
Podemos
notar que a má intenção do Ministro em pôr em prática seu
projeto de morte está sustentada em duas muletas: a primeira é
aproveitar da comoção nacional causada pela pandemia do novo
coronavírus, que ocupa boa parte dos noticiários, para avançar com
a devastação do meio ambiente; a segunda é aproveitar de um
momento de excepcionalidade do direito que deveria garantir o direito
à Vida, para exatamente ferir de morte as condições de vida,
exigindo uma desregulamentação infralegal, com potencial de
comprometer a existência das atuais e futuras gerações. Não
satisfeito, o ministro deixou as pessoas de boa vontade e as
instituições democráticas estarrecidas, ao bradar seu plano
macabro para devastar o meio ambiente em conluio com os grandes
interesses econômicos: “Então,
[...] porque só fala de Covid e ir
passando a boiada
e
mudando todo o regramento e simplificando normas. [...]. Agora é
hora de unir esforços pra dar
de baciada a simplificação”.
Ministro
do Meio Ambiente quer aproveitar o momento de luto e atenção da
imprensa à pandemia para acentuar seu projeto de morte: saquear os
bens naturais que são necessários para garantir as condições de
vida do povo e de toda a biodiversidade. Essa postura do antiministro
do Meio Ambiente é gravíssima e intolerável, pois revela falta de
ética, falta de transparência, interesses sombrios e
incompatibilidade moral para ocupar um cargo tão importante para o
presente e futuro do povo brasileiro e de toda sociobiodiversidade.
“Mudar e simplificar” quais regras para favorecer quem? O que a
opinião pública não deve saber? O antiministro Ricardo Salles foi
condenado judicialmente em primeira instância por improbidade
administrativa quando era secretário de Meio Ambiente do Estado de
São Paulo.
O
Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na prática, ministro
contra a Educação, afirmou durante a repugnante reunião
ministerial: “Odeio
o termo povos indígenas, odeio esse termo, odeio. Odeio povos
ciganos”,
bradou o ministro cuspindo ódio. E se referiu aos ministros do
Supremo Tribunal Federal chamando-os de vagabundos chegando a dizer
“eles
devem ser presos”.
As
falas e posturas vergonhosas e repugnantes na reunião ministerial
apenas evidenciam o que já era ressaltado por muitas pessoas: a
insensibilidade do desgoverno federal com o direito à vida. Não dá
mais para tolerar as políticas neoliberais que, na prática, são
recolonizadoras e também não dá mais para tolerar quem privatizam
a fé cristã, amputando a dimensão social do Evangelho de Jesus
Cristo. A questão religiosa está umbilicalmente ligada aos projetos
políticos fascistas e devastadores de direitos e destruidores do
meio ambiente, pois normalmente quem, religiosamente, é intimista,
fundamentalista e moralista, é também apoiador do desgoverno
federal. Enfim, quem privatiza a fé cristã para promover a
opressora teologia da prosperidade persegue também quem luta pela
superação dos desmandos políticos da necropolítica.
Por
isso, basta de remédios que são novos venenos, sejam eles na
religião ou na política.
Frei Gilvander Moreira |
Ele é articulista deste jornal O guardião da Montanha.
Escreve às terças-feiras
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Fonte: frei Gilvander Moreira
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