terça-feira, 5 de outubro de 2021

(De)formação da consciência no sistema do capital


Por Gilvander Moreira

Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas” (MARX [1875], 2012, p. 22, em carta a Wilhelm Bracke). Na sociedade do capital, “mundo antagônico ao humano e à vida” (IASI, 2011, p. 9), e especificamente no capitalismo, sistema histórico atual da sociedade em que vivemos, a sociabilidade é organizada em classes – a dos proprietários dos meios de produção (terra, indústria, fábrica etc.) e do capital financeiro, a dos trabalhadores expropriados da propriedade dos meios de produção – classe trabalhadora e campesinato -, uma pequena burguesia, eufemisticamente chamada de ‘classe média’, classes com interesses antagônicos inconciliáveis. A classe dominante, ao dominar, espolia e superexplora cada vez mais a classe trabalhadora e o campesinato. Acontece assim opressão de classe, o que suscita indignação e desencadeia rebeliões fazendo eclodir a luta de classes, que na sua dinâmica articula os aspectos objetivos e subjetivos que podem caminhar para a formação dos trabalhadores enquanto classe proletariada, não apenas como uma classe explorada da sociedade do capital, mas uma classe que se opõe ao capital e pode se tornar portadora de novas relações sociais para além do capital, em um novo tipo de sociabilidade humana emancipada.


 Rodoanel demolirá milhares de casas na RMBH. Carro de som NAS RUAS de bairros de BH


A consciência não é tudo, mas sem ela não é possível empreender uma caminhada/luta de emancipação humana. Julgamos pertinente e necessário elucidar o que seja consciência e como ela se forma ou se deforma. Consciência não é uma coisa. Se fosse, ao adquiri-la a teríamos pronta e acabada. E se não a tivéssemos, estaríamos em uma situação de “não consciência”. Mas consciência envolve processo, um movimento e não é algo dado e acabado. Assim como, segundo a filosofia existencial sartreana, o homem não é, mas se torna. “A existência precede a essência. [...] O homem não é mais que o que ele faz” (SARTRE, 1978, p. 6). Assim, também “a consciência não é”, “se torna”” (IASI, 2011, p. 12). Se o processo de emancipação humana implica e exige a formação de uma consciência humana para além do capital, é necessário compreendermos como se forma ou se deforma a consciência e seu processo de evolução ou de involução. A consciência se forma em várias fases ou formas. “A consciência é gerada a partir e pelas relações concretas entre os seres humanos, e desses com a natureza, e o processo pelo qual, em nível individual, são capazes de interiorizar relações formando uma representação mental delas” (IASI, 2011, p. 14).


Carro de som NAS RUAS CONTRA o Rodoanel: Mineirão e Independência/BH. Alenice/Henri.


Na luta pela terra e pela moradia, na sua preparação de base, na ocupação de um latifúndio que não cumpre sua função social, de um terreno ocioso ou prédio abandonado e na resistência para impedir despejo (reintegrasse de posse) uma série de relações concretas se estabelece entre os Sem Terra e os Sem Teto envolvidos na luta comum por bens comuns: terra e moradia. As condições objetivas estabelecidas na luta pela terra e pela moradia incidem sobre as consciências das pessoas, conclamando-as para abraçar processos emancipatórios. Por outro lado, quando as trabalhadoras e os trabalhadores permanecem isolados vendendo a si mesmos ao vender sua força de trabalho no altar do capital – mercado idolatrado -, outras condições objetivas, aqui as do capital, incidem moldando as consciências segundo a ideologia dominante, a que beneficia os interesses da classe dominante. “A primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações sociais é a família” (IASI, 2011, p. 15). Uma família comprometida na luta pela terra e/ou pela moradia não estará tão indefesa nas garras da consciência trombeteada aos quatro ventos pelo capital.


Gigante Ato Público e Marcha por “FORA, BOLSONARO!”, Belo Horizonte/MG


A classe dominante domina não apenas porque detém o poder econômico do capital, mas também porque seus indivíduos têm consciência, são pensadores e produzem ideias que são veiculadas como se fossem ideias universais. “Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).


Protagonismo da Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas, MG


Acima da família, é no mundo do trabalho que a consciência é (de)formada. A lógica imposta pelo capital é assimilada e interiorizada pela maioria dos trabalhadores que vão ‘espontaneamente’ ao altar do ídolo mercado para serem sacrificados um pouco a cada dia. “As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).


Visita à Ocupação Cidade de Deus, Sete Lagoas: Dr. Afonso, Dr. Paulo, Dom Francisco


Observe-se que as ideias dominantes se tratam de expressão ideal das relações materiais dominantes e não apenas expressão ideológica, como muitas vezes é traduzido. Por ser expressão ideal, no nível das ideias, as ideias dominantes são algo também ideológico no sentido de que escondem as relações de opressão embutidas nas relações sociais do capital. Assim, a primeira forma de consciência normalmente é alienada, pois, ao assimilar as experiências próximas e concretas, tende-se a amoldar a uma forma que naturaliza o que é construído historicamente em relações de poder. “A família, que antecede, no tempo, sua ação no indivíduo em relação às atividades econômicas de produção, é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as mediatiza. Aquilo que determina é determinado” (IASI, 2011, p. 26). Não nascemos em uma família tábula rasa e nem em uma sociedade no seu ponto zero. Desde o ventre materno já somos influenciados/condicionados e, ao nascer, caímos em um mundo do capital, no nosso caso, no sistema capitalista. As famílias que determinam em parte a consciência de seus filhos são determinadas pelo sistema do capital, que parece ser uma forma incontrolável de controlar as pessoas - e toda a biodiversidade -, como afirma István Mészáros: “Antes de mais nada, é necessário insistir que o capital não é simplesmente uma “entidade material” – também não é um “mecanismo” racionalmente controlável, como querem fazer crer os apologistas do supostamente neutro “mecanismo de mercado” (a ser alegremente abraçado pelo “socialismo de mercado”) – mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico” (MÉSZÁROS, 2011, p. 96).


Povo fica indignado ao saber da brutalidade do Rodoanel no Barreiro em BH e RMBH

Enfim, para início de conversa, para compreendermos a formação ou a deformação da consciência em uma sociedade capitalista não basta analisar as ideias que circulam no meio social, mas é imprescindível compreender a trama das relações sociais de opressão e exploração que condicionam e muitas vezes determinam a construção ou destruição de consciência emancipatória.


Socorro! Idosos sem água e sem energia na Ocupação Vitória na Izidora em BH. Cadê COPASA?

 


Referências

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. 1ª edição revista. São Paulo: Boitempo, 2011.


Fonte: frei Gilvander Moreira




Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.


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