sábado, 19 de março de 2022

"Lições do Imponderável"

 

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”.

Franz Kafka, em “A Metamorfose”


Há um truque bem simples para fomentar um debate ou alimentar uma conversa: faça uma lista de preferências. Por exemplo, crie uma lista com “os dez melhores filmes da história do cinema mundial” ou “livros que você não pode deixar de ler”, e muito provavelmente você terá retorno das outras pessoas sobre as obras que não foram citadas por você. Dependendo do grau de paixão que a obra provoca, prepare-se para argumentos acalorados, provocações, amizades estremecidas.

E, de certa forma, os seres humanos adoram listas. Uma breve pesquisa na internet mostra a quantidade imensa de listas que são divulgadas por milhares de pessoas ao redor do mundo, mostrando que a paixão e o interesse que as listas provocam, de certa forma, são um fenômeno que não respeitam fronteiras ou culturas.

Coloco aqui que eu gosto de listas. Não sou extremista a ponto de ofender a autora da lista ou achar que o autor esqueceu algum item que considero importantíssimo a ponto de se tornar destinatário de infindáveis mensagens de minha autoria solicitando a sua inclusão. Mas gosto de listas a ponto de lê-las ou assistir a videos com listas sempre que possível, e a ponto de ser inscrito em um site especializado em divulgação de listas, o “Listverse.com”.

Um dos tipos de listas que gosto de ler são as que procuram indicar quais as melhores primeiras frases de livros e contos publicados. Há várias delas disponíveis na internet, geralmente fomentadas por editoras ou amantes da literatura. Esta lista em especial busca indicar quais as frases iniciais de livros que, por si só, geram um impacto que abalará o leitor de alguma forma, prendendo-o ao texto. Várias frases iniciais de livros ou contos são recorrentes nessas listas. E uma das mais lembradas é a frase de abertura do conto “A Metamorfose”, de Franz Kafka.

Li o famoso conto de Kafka quando eu tinha entre 14 e 15 anos de idade. Encontrei um livro contendo a famosa obra do escritor nascido na República Tcheca em uma promoção, e curioso em conhecer a história do homem que se transformou em barata, aproveitei a oportunidade e levei o livro comigo. Não o li de imediato. O volume ficou esperando alguns dias na estante.

Até que o peguei, fui para um lugar tranquilo e o abri. E descobri o motivo pelo qual Gabriel Garcia Marquez decidiu se tornar escritor ao ler a frase inicial do conto de Kafka. O impacto da sentença atingiu-me como um soco. Crua, seca, sem rodeios sou apresentado ao fato de que um homem acordara totalmente transformado, de forma inexplicável, em um ser abjeto. Quem era ele? O que fizera para merecer tal destino? Qual sua vida pregressa? Como ficaria sua vida agora? Tinha cura? E sua família e amigos?

Não quero estragar o prazer daqueles que desejarem ler o conto, revelando muito de seu enredo nestas linhas. O que posso dizer é que Kafka responde às perguntas que explodem com sua genial abertura de forma lenta e também incompleta, mostrando que o verdadeiro protagonista da história é o inesperado.  

Somos seres que temos uma certa capacidade de vislumbrar o que ocorre em nosso presente e as consequências de nossos atos para o futuro. E assim idealizamos, planejamos, executamos ações e passos minimamente ordenados para alcançarmos os objetivos traçados. O agricultor sabe o momento de plantar para que tenha colheita. Quem cozinha sabe que determinados pratos precisam ter alguns de seus elementos “pré-parados” para que possam se unir aos demais ingredientes em condições adequadas. Quem sai de casa para algum compromisso se planeja para chegar no local e no momento desejados.

Então vem o imponderável, e nos mostra que nossas certezas são apenas probabilidades.

A geada destrói a colheita. A mosca mergulha no molho preparado horas antes. O prego fura o pneu de um veículo e a pontualidade de quem o guiava.

Um encontro fortuito em um banco de praça e um casamento se esvai. A caminhada rotineira se transforma em tonteira e em dependência parcial ou completa, se não a passagem definitiva que todos faremos.

Mas há também o engenheiro que vai passear com o cachorro, e os carrapichos grudados nos pelos de seu amigo o inspiram a criar o velcro. Um cientista esquece uma placa de petri fora do local adequado para armazenamento, e o mofo nascido na placa o inspira a desenvolver a penicilina. Um sábio lê um papiro na biblioteca de Alexandria e o mundo será medido com sombras.

Todos nós estamos vulneráveis ao imponderável, ao imprevisto que pode recalcular a rota de nossa vida para destinos nunca antes imaginados. Como o sentimento de segurança é um dos mais básicos do ser humano, pensar que toda jornada tem uma probabilidade de não sair conforme o planejado nos gera desconforto. Mas ignorar esta probabilidade pode ser pior ao longo do caminho.

Particularmente, quando me deito à noite, aprendi a refletir sobre o que me aconteceu durante o dia que se foi. E quando peso os acontecimentos da maneira mais justa possível, dou-me conta do quão fortuito é eu estar deitado, de maneira confortável, podendo conscientemente pensar sobre o dia que passou e o dia que pode vir.

Tantas coisas poderiam ter acontecido para eu não estar ali! E meu ego sempre diz que tudo poderia ser melhor. Mas olhando com os olhos da essência, e assumindo a maravilhosa imprevisibilidade da Vida, dou-me conta da fragilidade e da beleza de cada momento. E assim, sem cair no otimismo exagerado, respeitando a tristeza quando ela vem, buscando aprender com os erros e acertos e tendo a alegria como consequência de atos conscientes e não como meta em si mesma, desenvolvo e fortaleço o sentimento que é a semente da verdadeira positividade: a Gratidão.


Maurício Luz

Maurício Luz escreve a Coluna "Frases em Nosso Tempo", aos sábados para O Guardião da Montanha.

Ele é carioca e ganhou prêmios:

1º Belmiro Siqueira de Administração – em 1996, na categoria monografia, com o tema “O Cliente em Primeiro Lugar”. 

E o 2ºBelmiro Siqueira em 2008, com o tema “Desenvolvimento Sustentável: Desafios e Oportunidades Para a Ciência da Administração”..

Ex-integrante da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Conselho de Administração RJ. 

Com experiência em empresas como SmithKline Beecham (atual Glaxo SmithKline), Lojas Americanas e Petrobras Distribuidora, ocupando cargos de liderança de equipes voltadas ao atendimento ao cliente.

Maurício Luz é empresário, palestrante e Professor. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997). 

Mestre em Administração de Empresas pelo Ibmec (2005). Formação em Liderança por Condor Blanco Internacional (2012). 

Formação em Coach pela IFICCoach (2018). Certificado como Conscious Business Change Agent pelo Conscious Business Innerprise (2019). 

Atualmente em processo de certificação em consultor de Negócios Conscientes por Conscious Business Journey.

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