terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Natal dos índios - Deus se fez índio, quilombola ...

Presépio indigena 
Por articulista  frei Gilvander Moreira  - CPT - Comissão Pastoral da Terra  

Escreve todas às terças-feiras 

É tempo de natal, mas dá para celebrar o natal no meio da fase mais cruel do capitalismo, máquina de moer vidas humanas e vidas de todos os seres vivos, que atualmente não apenas explora, mas superexplora a dignidade humana, a dignidade da mãe terra, da irmã água e de toda a biodiversidade? A realidade está mais para sexta-feira da paixão, porque na última eleição no Brasil foram eleitos para o poder político políticos da pior estirpe, que acumpliciados com o poder econômico das empresas transnacionais, com o capital especulativo, com agronegócio e mineradoras, estão eliminando todas as conquistas de direitos sociais conquistados com muita luta e tendo custado a vida de milhares de mártires, durante as últimas décadas.


Sob a avalanche do antinatal do mercado idolatrado, necessário se faz resgatar o sentido bíblico do Natal de Jesus Cristo, que é inspirador e revolucionário. Faz bem entendermos a narrativa bíblica do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o nascimento do galileu que se tornou Cristo. O Evangelho de Lucas não é crônica jornalística escrita sob o calor dos fatos. Escrito na década de 80 do século I da era cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na ressurreição de Jesus Cristo. Para o evangelista Lucas, foram os pastores – os trabalhadores mais discriminados da época – os que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano. Quando nasceu Jesus Cristo? Onde? Em que contexto? Na presença de quem? E foi visitado e acolhido por quem?

Jesus de Nazaré nasceu em tempos de imperialismo romano com o imperador Augusto baixando decreto para aumentar o peso da tributação nas costas do povo, além de manter a superexploração, por meio da escravidão, a quem eram submetidos mais de 60 milhões de pessoas nas muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o pai de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele teve que viajar da cidadezinha de Nazaré, na Galileia – periferia e norte da Palestina -, até Belém, na Judeia, mais de 120 quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua esposa Maria que estava na iminência de dar à luz um menino (Lc 2,3-5). Em uma colônia dominada pelo imperialismo romano, por governadores submissos aos interesses imperiais e com a cumplicidade de um poder religioso – o sinédrio – que usava o nome de Deus para excluir e marginalizar a maioria do povo, como trecheiro, estradeiro, “irmão de rua”, migrante, retirante, sem-terra, sem-teto, refugiado, índio, quilombola, migrante e judeu da periferia, nasceu Jesus Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior. Jesus não nasceu em Jerusalém nem em Roma, capital do império, nem em Brasília, nem na Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e José tiveram que ocupar um curral na periferia de Belém, porque não encontraram hospedagem na cidade, certamente porque estavam sem condições financeiras de pagar hotel ou hospital particular.

Ao descrever o nascimento de Jesus, o evangelista Lucas estabelece estreito paralelismo com a morte e ressurreição do Messias. De fato, em Lc 2,7a se diz que “Maria enfaixou Jesus e o colocou na manjedoura”; em Lc 23,53a afirma-se que “José de Arimateia enfaixou o corpo de Jesus e o colocou em um sepulcro”. Ou seja, escrevendo uns cinqüenta anos após a crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, o evangelista aponta que a missão de Jesus será espinhosa (tinha sido), terá que enfrentar a violência de podres poderes e de opressores (tinha enfrentado ...) - e, por isso, será condenado à pena de morte, crucificado (martirizado) (tido sido ...), mas ressuscitará ao terceiro dia (tinha ressuscitado).

Jesus nasce no meio dos pastores (Lc 2,8), os injustiçados e execrados pela classe dominante (saduceus) onde estão os senhores “de bens” que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social. Entre todos os segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as pastoras eram os/as mais explorados/as, considerados/as impuros/as, principalmente porque não respeitavam as propriedades privatizadas. Para os pastores e pastoras, o território era um bem comum e, por isso, levavam os rebanhos que cuidavam para pastar em outras propriedades. Assim eram considerados invasores de propriedades privadas. Para os pastores e as pastoras, “Terra de Deus, terra de irmãos!”, tema da Campanha da Fraternidade de 1986 que desencadeou a luta social que fez inscrever a função social da propriedade na Constituição Federal de 1988.

Um anjo de Deus apareceu aos pastores” (Lc 2,9), não apareceu ao imperador, nem ao governador, nem a nenhum sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada pura, integrada à sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que iria testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a utopia “vida e liberdade para todos/as e tudo” (Jo 10,10). Hoje podemos dizer que um/a anjo/a apareceu a Marielle Franco, aos indígenas, aos quilombolas e continua aparecendo a todos/as os/as considerados/as impuros/as que se irmanam na luta em defesa dos injustiçados/as.


Nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, o nascimento de Jesus não é apresentado de forma neutra diante das contradições e desigualdades sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) fazem opção de classe, têm lado: o lado dos oprimidos e injustiçados. A luz divina foi experimentada pelos pastores e pastoras, em uma noite escura (Lc 2,8-9), – como a noite que se abateu sobre o povo brasileiro com a eleição de Bolsonaro, de governadores, de deputados e senadores, todos vassalos de um capitalismo ultraliberal. A luz e a força divina irromperam naqueles e naquelas que eram os/as mais rejeitados/as na Palestina, colônia do Império Romano.

Nas primeiras comunidades cristãs se lia naquela época o texto do profeta Isaías que dizia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos pastores e pastoras foi: “Não tenham medo! Eis uma ótima notícia para todo o povo explorado. Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10). Essa mensagem ganha eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo imperador ou rei, arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que estava sendo entronizado como novo Salvador (soter, em grego) e Senhor (Kurios, em grego).

As primeiras comunidades cristãs fazem uma revolução copernicana e subvertem a ideologia dominante que divinizava o poder e quem estava no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que nasceu no meio dos superexplorados. O anjo alerta: só quem se mistura com os periféricos e com eles convive consegue experimentar o divino se revelando no humano a partir dos porões da humanidade (Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos e empobrecidas acumula preconceitos e se desumaniza. Diz o evangelista Lucas que os anjos fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom, em hebraico) no meio do povo (Lc 2,14). A glória de Deus brilha quando o humano em todas as pessoas é respeitado e valorizado. Paz como fruto da justiça, shalom, acontece quando os governos com organização popular efetuam mudanças estruturais para superar a desigualdade social e promover a justiça social com respeito à imensa diversidade cultural, aos direitos da natureza, dos animais e toda a biodiversidade existente no nosso país e no mundo.

Os pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do acontecimento” (Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às catedrais do deus mercado, nem ao Império do capital, nem ao agronegócio e nem às mineradoras. “E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados” (Lc 2,18). Quem não ouve, não respeita e nem participa da luta dos/as sem-terra, dos/as sem-teto, dos atingidos pelas mineradoras, dos/as migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em situação de rua, dos/as indígenas, dos/as quilombolas, das mulheres e dos nossos irmãos e irmãs LGBTTQIs[2] não consegue compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus Cristo.

Os pastores e as pastoras reconhecem o poder popular nascido na periferia de Belém, cidade do pastor Davi que se tornou rei bom. “É de ti Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador” (Miq 5,1), bradava a profecia inspiradora do profeta Miqueias. 

Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico) significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o menor entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade para lutar por um governo justo, popular e democrático. O verdadeiro “rei dos judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar às pressas, logo após o nascimento, como refugiado, para não ser assassinado pelo poder repressor de plantão. 

Segundo o Evangelho de João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos/as (Jo 6,35-59). Os pastores e as pastoras intuem com sabedoria que o poder democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos.

O natal trombeteado aos quatro ventos pelos arautos do mercado idolatrado é um antinatal, abusa do nascimento de Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança, viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. O Papai Noel é um mentiroso, nojento e fantoche do ídolo capital que cumpre uma tarefa suja: seduzir as crianças e as famílias para consumirem ao máximo até se consumirem e se desumanizarem gradativamente. Quem não se alia à luta por direitos de sessenta por cento dos brasileiros que sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês não consegue vivenciar o sentido sublime e profundo do Natal de Jesus Cristo, está sendo mentiroso/a, pois não está abraçando o projeto de Jesus, o Cristo libertador e salvador.


Quem é discípulo/a do menino que nasceu como refugiado na periferia de Belém precisa insurgir ao lado de toda a classe trabalhadora e camponesa e das forças vivas que lutam pela superação de todas as injustiças. É hora de acordar do sono imposto por falsos pastores, falsos padres, por fake news e pelas contradições dos Partidos Políticos. É hora de despertar para as lutas de base e massivas. Os poderosos aparentam ser gigantes, mas têm pés de barro, pois estão recheados de contradições e mentiras. O menino Deus nascido na periferia de Belém vive em todos/as que lutam por justiça social, justiça agrária, justiça ambiental, justiça urbana e por direitos humanos fundamentais. Por isso, no Brasil, em 2019, no Natal de Jesus: Deus se fez índio, quilombola ...
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.  
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br –  Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers e pessoas Intersex.
Fonte: frei Gilvander Moreira        







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