Por Gilvander Moreira - Escreve às Terças Feiras
“Feliz
de um povo que não esquece seus mártires”,
gosta de repetir Dom Pedro Casaldáliga. “De fato, é
imprescindível resgatar a memória dos mártires e processo
histórico, do contrário não é possível compreender o presente e
forjar um futuro digno. Dia 10 de maio de 2020, celebramos 34
anos do martírio do padre Josimo Moraes Tavares: 10/5/1986 a
10/5/2020. Por isso, o recordamos. Após tentativa de assassinato
contra padre Josimo, no dia 15 de abril de 1986, quando cinco tiros
foram disparados contra a Toyota em que ele viajava na defesa dos
camponeses, profundamente ameaçado de morte - e de ressurreição!
-, incompreendido por colegas padres e agentes de pastoral,
inclusive, padre Josimo foi convocado a elaborar um relatório de
suas atividades e a esclarecer as circunstâncias que levaram a
tantas ameaças de morte contra ele.
Em
seu belíssimo Testamento Espiritual e profético, pronunciado
durante a Assembleia da Diocese de Tocantinópolis, MA, no dia 27 de
abril de 1986, poucos dias antes de seu assassinato, dizia Josimo que
sua morte estava anunciada, encomendada e prescrita nos anais das
correntes que desejavam ardentemente eliminá-lo. Fazendeiros e
empresários do campo já o haviam condenado sumariamente à pena de
morte. Mas Josimo se encontrava firme, impulsionado pela força do
Evangelho de Jesus Cristo, pois havia assumido sua missão pastoral
de compromisso com a causa dos camponeses oprimidos e injustiçados.
Josimo declarou: “Pois
é, gente, eu quero que vocês entendam que o que vem acontecendo não
é fruto de nenhuma ideologia ou facção teológica, nem por mim
mesmo, ou seja, pela minha personalidade. Acredito que o porquê de
tudo isso se resume em três pontos principais: a) Por Deus ter me
chamado com o dom da vocação sacerdotal e eu ter correspondido; b)
Pelo senhor bispo, dom Cornélio, ter me ordenado sacerdote; c) Pelo
apoio do povo e do vigário de Xambioá, então Padre João Caprioli,
que me ajudaram a vencer nos estudos. “O discípulo não é maior
do que o Mestre. Se perseguiram a mim, hão de perseguir vocês
também.” Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela
causa dos pobres lavradores indefesos, povo oprimido nas garras dos
latifúndios. Se eu me calar, quem os defenderá?
Quem lutará a seu
favor? Eu pelo menos nada tenho a perder. Não tenho mulher, filhos e
nem riqueza sequer, ninguém chorará por mim. Só tenho pena de uma
pessoa: de minha mãe, que só tem a mim e mais ninguém por ela.
Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidarão dela. Nem o medo me
detém. É hora de assumir. Morro por uma justa causa. Agora quero
que vocês entendam o seguinte: tudo isso que está acontecendo é
uma consequência lógica resultante do meu trabalho na luta e defesa
dos pobres, em prol do Evangelho de Jesus Cristo que me levou a
assumir até as últimas consequências. A minha vida nada vale em
vista da morte de tantos pais lavradores assassinados, violentados e
despejados de suas terras. Deixando mulheres e filhos abandonados,
sem carinho, sem pão e sem lar. É hora de se levantar e fazer a
diferença! Morro por uma causa justa.”
Padre
Josimo Tavares sabia que ‘os filhos das trevas’ –
latifundiários amantes do deus capital – estavam na iminência de
matá-lo. Ele teve a coragem de não fugir da missão. Padre Josimo
sabia que a verdade liberta, porque consola os explorados, mas dói e
incomoda os opressores. Como Jesus subindo da Galileia para
Jerusalém, enquanto coordenador da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Josimo continuou sem arredar um milímetro do seu compromisso
com os camponeses injustiçados. Dia 10 de maio de 1986, dia das
mamães, padre Josimo foi assassinado covardemente enquanto subia as
escadas do prédio da Mitra Diocesana de Imperatriz, MA, onde
funcionava a sede da CPT Araguaia-Tocantins. Ainda teve forças para
entrar no hospital andando. Isso foi o ‘presente de grego’ que
fazendeiros e jagunços deram a dona Olinda, mãe do padre Josimo, no
dia das mães, sendo ele filho único.
Em
2006, Claudemiro Godoy do Nascimento, no artigo “20 anos com
Josimo”, recordava: “Há 20 anos, o Brasil vivia momentos de
transformações políticas e econômicas que dinamizavam o cenário
das relações políticas. Na região do Bico do Papagaio a situação
não se diferenciava. Com o anúncio do fim do regime ditatorial
havia uma rearticulação política das oligarquias rurais na chamada
Nova República. A luta social se encontrava diante de fortes
momentos de tensão e conflito por parte de fazendeiros e
trabalhadores rurais que tinham na Igreja, na CPT, nos sindicatos e
nos novos movimentos sociais do campo uma esperança em ver realmente
a terra partilhada para todos e todas. Josimo é a testemunha fiel e
nos ensina que vale a pena dar a vida pela causa do Reino, das
comunidades e do povo. Sua morte significou o compromisso assumido em
denunciar as estruturas de morte alimentadas pelas injustiças
políticas de mandos e desmandos de uma oligarquia rural que ousava e
ainda ousa se estabelecer no poder da República. É neste sentido
que Josimo se torna o padre mártir da Comissão Pastoral da Terra ao
selar com seu sangue uma opção, um compromisso e um engajamento na
defesa dos oprimidos, em especial, os trabalhadores rurais.”
Poderíamos relembrar os versos de Pedro Tierra escritos por ocasião
do martírio de Padre Josimo em maio de 1986: “Quem é esse
menino negro / Que desafia limites? / Apenas um
homem. / Sandálias surradas. /Paciência e
indignação. / Riso alvo. / Mel noturno. / Sonho
irrecusável. / Lutou contra cercas. / Todas as
cercas./ As cercas do medo. / As cercas do ódio. / As
cercas da terra. / As cercas da fome. / As cercas
do corpo. / As cercas do latifúndio”.
Para
Josimo, ser padre significava sentir a vida brotando como serviço
justo a Deus e aos pobres, sobretudo. Para ele, o culto, a
eucaristia, a teologia e toda a missão pastoral significava o agrado
que fazemos a Deus no serviço aos pobres, aos doentes e
marginalizados da sociedade. Percebemos nos escritos, nos poemas e
nos registros de Josimo uma profunda intimidade com sua opção
primeira, a saber: a Diakonia, ou seja, o serviço
profético emancipatório, o estar sempre servindo aos empobrecidos
do Bico do Papagaio, que eram os trabalhadores rurais expulsos e
espoliados da terra pelos grandes fazendeiros locais e pelos
políticos ao estilo coronelista. Portanto, ser padre segundo Josimo
era ser Profeta da Justiça, Pastor na Caminhada e Sacerdote humilde
que procurava oferecer a Deus oferendas justas. Josimo é a própria
oferta. Tornou-se um ofertório vivo para nossas comunidades e para a
construção do Reino de Deus a partir do aqui e agora.
Padre
Josimo, em vida plena, continua vivo em nós na luta. Vivo nas
memórias do povo, nas experiências dos educadores populares, nos
escritos da Teologia da Libertação e no compromisso dos poucos
agentes de pastorais que continuam reafirmando o mesmo compromisso
com o Reino de Deus, com a construção de um mundo democrático, com
a justiça social, ambiental, urbana e sustentabilidade ecológica.
Não podemos deixar que a história de Josimo se perca. Ele é
importante porque tornou o povo sujeito da história. Com Josimo, os
dominados constroem suas histórias que não mais é feita segundo a
lógica da classe dominante.
O
nome de Padre Josimo está hoje em centenas de Acampamentos de Sem
Terra, de Assentamentos de Reforma Agrária, de Ocupações Urbanas,
de Comunidades Eclesiais de Base, de Escolas, de Ruas etc. Ele está
muito vivo e presente nos corações e nas mentes de milhões de
pessoas que lutam para que a Mãe terra seja libertada das garras do
latifúndio e partilhada com milhões de sem-terra através de uma
reforma agrária popular, massiva e democrática.
Como
cantor da Caminhada nas noites escuras da opressão, movido pelo
testemunho de Josimo, Zé Vicente compôs a música “Renascerá”
em sua homenagem: “Renascerá, renascerá, o teu sonho, Josimo,
/ De um novo destino renascerá! / E chegará, e chegará tempo novo
sagrado / Há tanto esperado, pra nós chegará!”
Quem
conviveu com Josimo diz: “Ele era um poeta, tocava violão,
gostava de escutar as histórias das pessoas, tinha um jeito humilde
de ser, gostava de usar aquelas chinelas havaianas…” Enfim,
pela sua opção pelos pobres e pelo seu compromisso com a causa dos
camponeses expropriados de suas terras e explorados, padre Josimo se
tornou outro Cristo no nosso meio. Padre Josimo se sentia confirmado
pelo discurso da montanha de Jesus, onde em alto em bom tom, o
Galileu profetizou: “... Felizes os que, como o padre
Josimo, são perseguidos por causa da justiça, porque deles
é o Reino do Céu. Felizes vocês, como padre Josimo, se
forem insultados e perseguidos, e se disserem todo tipo de calúnia
contra vocês, por causa de mim. Fiquem alegres e contentes ...”
(Mateus 5,10-11). Por essa mística profética não podemos
nos calar diante de nenhuma injustiça. Que tenhamos a coragem e a
lucidez do padre Josimo de perguntar com nossa práxis: “Se
nos calarmos, quem os defenderá?”
Frei Gilvander Moreira |
Ele é articulista deste jornal O guardião da Montanha. E escreve às terças-feiras
Frei
e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto
Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações
Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos
Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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