Por Frei Gilvander Moreira
"Dia 02 de novembro é dia de finados, dia de reverenciarmos quem já partiu para a vida em plenitude. Já “perdi” o papai, a mamãe, vários tios, tias, primos, vários companheiros de luta por justiça social e muitos amigos/as. Já “perdemos” mais de 160 mil irmãos e irmãs, vítimas da pandemia da COVID-19 e, principalmente, vítimas do desgoverno fascista e genocida, sustentado por uma elite enxovalhada de luxo que custa sangue de milhões de outras vidas. “Perdemos” a cada ano mais de 250 mil irmãos e irmãs, vítimas do câncer provocado pelos empresários do agronegócio e das monoculturas que envenenam a mãe terra, a irmã água, os alimentos e o ar com centenas de tipos de agrotóxicos que disseminam uma epidemia de câncer. O Brasil se tornou um país que mata de mil formas. Urge aprendermos também a lidar com a morte de um jeito saudável.
A dor da separação de quem a gente ama é grande. Às vezes, não acreditamos no que está acontecendo, tudo parece um grande sonho; a vontade de que tudo fosse “um sonho” é muito grande. Nosso “instinto” é viver sempre. Para compreendermos o sentido do viver e do morrer faz bem olharmos para a natureza, para várias passagens bíblicas, outras culturas e refletir a partir do coração. Nascer, desenvolver e morrer é o ritmo bio-fisiológico dos seres vivos que demarcam sua existência no mundo. Viver é um dom, mas viver e morrer são “carne e unha” e se entrelaçam como duas faces de uma moeda. Estar na vida é ter a morte como ausência-presente, e morrer pode ser uma sábia conclusão da vida. A vida carrega a morte potencialmente, mas da morte brota a vida. Em todos os segundos da nossa vida morremos e renascemos. No nosso corpo constantemente células morrem e outras renascem. O desabrochar da vida é resultado de sínteses de muitas mortes, porque é morrendo que se garante a vida permanente. A semente lançada ao chão, que não morre, não desabrocha em flor e fruto. Flor e fruto são as vitórias da vida vencendo a morte. A verdade da árvore não está contida nela mesma, mas na semente como dom da árvore. Se a árvore não estivesse contida na semente como potencialidade, não seria possível sua atualidade de árvore. Morrer e viver, binômio que constitui a dialética da nossa existência. Engana-se quem dualistamente separa vida e morte. Na morte da semente a vida da flor desabrocha, afirmando que a vida continua, passando pela morte. Assim, semente, flor e frutos se encontrarão na festa da árvore da vida, em uma permanente caminhada para o Reino da luz. Para vários povos africanos a morte viabiliza um reencontro com nossos antepassados e ancestrais. No momento da morte, como uma gota d’água caímos no oceano que é a vida em plenitude e entramos em comunhão com todo o universo nos desprendendo dos amarras do tempo e do espaço.
Na passagem para a plenitude de pessoas que amamos é momento de recordarmos algumas frases bíblicas que nos ajudam a ver com o coração, nos consolam e fazem-nos repousar na certeza da ressurreição para todos/as e tudo. Jesus dizia quando seus discípulos/as sentiam a sua partida e queriam segurá-lo: “Subo para junto de meu Pai!” (Jo 20,17). Um anjo disse às mulheres que não se conformavam com a morte de Jesus: “Não fiquem assustadas! Ele ressuscitou!” (Mt 28,6). Sentindo que Jesus tinha ressuscitado as mulheres transbordavam em alegria (Mt 28,9). Jesus disse e provou pelo jeito de viver, conviver e lutar que era a Ressurreição e a Vida. Jesus dizia:“Quem acredita em Mim, mesmo que morra, viverá!” (Jo 11,25).Dois anjos perguntaram às mulheres: “Por que estão chorando?” (Jo 20,13). No episódio da “morte e ressurreição de Lázaro” vimos que “Jesus ficou comovido e … chorou! (Jo 11,33-35). O povo concluiu espontaneamente dizendo: “Vejam como Ele o amava!” (Jo 11,36). “Apóstola dos apóstolos”, Maria Madalena, diante do sepulcro vazio, com o coração profundamente comovido, porque amava imensamente Jesus, fez a experiência de que Jesus estava vivo, ressuscitado. Transfigurada, Maria Madalena saiu correndo para ser missionária da verdade mais revolucionária: “Jesus ressuscitou! Está vivo!” (Jo 20,1-18). “Realmente Ele ressuscitou…!” (Lc 24,34), concluíram os apóstolos e discípulos de Jesus, após passarem pela noite escura da morte. Lembremo-nos de Marta e Maria chorando a morte de Lázaro! (Jo 11,1-43), da viúva de Naim chorando a perda de seu filho único! (Lc 7,1-11). Recordemos das crianças e de tantas vidas ceifadas antes do tempo.
“A morte é nossa irmã”, dizia Francisco de Assis, e é também mestra! Primeira coisa que nos ensina: devemos ser humildes! Incrível como é frágil e vigorosa nossa vida. Somos uma preciosidade em vasos de barro! Equivoca-se quem é orgulhoso e arrogante! Diante da morte, é preciso olhos da fé e do coração para vermos o invisível. Antes de nascermos, passamos nove meses no ventre da nossa mãe. Para nascermos para o ventre da mãe Terra, precisamos antes, morrer para o ventre da nossa mãe. Conta-se que dois gêmeos que se amavam muito, no momento do nascimento, um nasceu primeiro, e o outro, que ficou para trás, começou a chorar: “Meu irmãozinho morreu!” Daí a pouco, quando o segundo nasce e encontra o primeiro já nos braços da mãe mamando tranquilamente, fica extasiado e exclama: “Uai! Você não tinha morrido?!” Com um sorriso lindo o irmão responde: “Não! Nascemos para o ventre da mãe Terra, um ventre mais espaçoso e belíssimo.” Assim acontece quando morremos para o ventre da mãe Terra: nascemos para o ventre por excelência que é o ventre de Deus, vida plena, terna e eterna.
Não devemos perguntar somente: por que alguém que amamos morreu? Devemos perguntar principalmente: para que ele/ela morreu? Que ao celebrarmos a passagem das pessoas que foram na nossa frente possamos nos encher de ânimo para vivermos a vida nos doando aos outros e que a saudade de quem foi antes de nós nos ensine a amar profundamente a todos/as. A morte-ressurreição chega de repente! Devemos ser bons alunos da morte! A morte fecha os olhos de quem vai para a vida em plenitude, mas pode abrir os olhos de quem fica. Que vejamos o lado de dentro de realidades que não podíamos “ver” antes. Considerar a iminência da morte e tê-la, vez por outra, como conselheira é fazer-se sábio/a para seguir vivendo com saber e sabor que humaniza. A melhor forma de nos prepararmos para a morte não é com ritos religiosos, mas vivendo intensamente cada segundo como único e explicitando cotidianamente o que há de mais humano em nós.
Pela morte também se celebra Páscoa. Esta é passagem amorosa e libertadora de Deus que ressuscitou um crucificado, e isso é esperança para todos os crucificados da nossa história. A cruz e a morte fazem parte da nossa vida, mas não são o nosso destino final. Temos vocação para o infinito; somos herdeiros/as do céu e da terra. Nosso Deus é o Deus Criador da Vida. Jesus veio para que todos tenham “vida em abundância” (Jo 10,10). Por meio do profeta Jeremias, Deus nos diz: “Segure os soluços e enxugue as lágrimas, porque há uma esperança para a sua dor… existe uma esperança de futuro” (Jer 31,16-17). Em seu testamento espiritual, narrado no quarto evangelho, Jesus comparou a sua morte-ressurreição com a experiência de ser mãe. Na véspera de morrer, ceando com sua comunidade, disse: “Quando a mulher está para dar à luz, sofre porque chegou a sua hora. A criança nasce e a mãe nem se lembra mais da dor, pelo prazer de ter dado ao mundo um novo ser humano. Assim também, agora, vocês estão tristes, mas hei de vê-los outra vez. Então, o coração de vocês se alegrará e ninguém lhes tirará essa alegria” (Jo 16, 21-22).
Jesus foi condenado à morte, mas ele ressuscitou. Por isso o ideal não morre. Com a ressurreição de Jesus as utopias jamais morrerão, os sonhos de libertação jamais serão pesadelos, a luta dos pequenos será sempre vitoriosa (ainda que custe muito suor e sangue) e a forças da Vida terão sempre a última palavra. Por mais cruéis que sejam, todas as tiranias passarão! Se olharmos, com benevolência, em volta, veremos, surpresos, que os sinais de Páscoa superam os sinais de morte.
Todas as pessoas choram para fora ou por dentro, de dor e/ou por amor. “Sempre fica perfume nas mãos de quem oferece flores”, ou seja, de tudo podemos tirar e sentir força, boas lições, esperança e alegria. Que a oração e a solidariedade mútua nos transmitam uma paz inquieta e a certeza em última instância de que as pessoas que amamosnão morreram, mas vivem plenamente, na luz divina, “no andar de cima” e em cada um/a de nós, porque jamais se apagará em nós a memória deles e delas: suas imagens, atos, conselhos e lições de vida que, durante a vida,com muita alegria, nos deram. Cultivemos um sentimento de gratidão a Deus, mistério de amor que nos envolve, e à vida pela dádiva que foi ter colocado em nossas vidas pessoas tão humanas que já não mais estão conosco fisicamente, mas estão em nós de muitos modos.
Leia, medite e reze na Bíblia Isaías 43,1-5 e o Salmo 23, o do Bom Pastor. Levantemos a cabeça! Os discípulos e discípulas do grande profeta Isaías nos recordam que Deus não nos abandona e nos ama imensamente (Is 43,1-5). Que a agulhada da morte de quem faz parte de nós nos faça mais humanos/as e solidários/as com todos que sofrem! O livro do Apocalipse nos diz que “Deus mesmo enxugará toda lágrima dos nossos olhos…” (Ap 7,17)."
"Um abraço caloroso, apertado e solidário, de quem quer estar muito próximo de quem experimenta uma travessia difícil, de parto, de partida para uma vida nova, vida de comunhão total com Deus, consigo mesmo, conosco e com todo o universo."
Fonte: Frei Gilvander Moreira
Frei Gilvander Moreira |
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG
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