quarta-feira, 25 de agosto de 2021

"Igreja e questão agrária: da solidariedade à Opção pelos Pobres?"


Por Gilvander Moreira

"A história da Igreja Católica no Brasil mostra mudança de postura com relação aos camponeses que lutam pela terra. Houve tempos da cumplicidade da Igreja com o latifúndio, os latifundiários, como o revelado pelo bispo de Campanha, no sul de Minas Gerais, em 1950. Passou-se para uma postura de solidariedade sob ingenuidade política que levava os padres e bispos a acreditarem que o problema da miséria e da pobreza seria resolvido com o crescimento econômico do País. E, pouco a pouco, parte da igreja abraçou uma postura política na defesa do campesinato e de denúncia do latifúndio como opressor ao compreender que quanto mais se desenvolvia o capitalismo mais gerava miséria e violência social.


A Constituição de 1946, no seu artigo 141, não alterou o pacto político que garantia os interesses dos grandes proprietários de terra ao restringir as “desapropriações de terra para fins sociais (inclusive, para a reforma agrária) à obrigatoriedade da indenização prévia e em dinheiro ao proprietário” (MARTINS, 1999, p. 72). A Constituição de 1946 prescrevia ainda que a indenização fosse justa. No entanto, a atuação de militantes do Partido Comunista junto aos camponeses no Brasil, precisamente aos arrendatários das Ligas Camponesas e aos posseiros de Trombas, em Goiás, provocou o engajamento da Igreja Católica junto aos camponeses, inicialmente em campanhas de alfabetização, de conscientização e de organização. O pontapé foi dado por um bispo conservador, Dom Inocêncio Engelke, da Diocese de Campanha, no sul de Minas Gerais, que lançou, em 10 de setembro de 1950, em um encontro de 60 párocos, 250 fazendeiros e 270 professoras camponesas, uma Carta Pastoral[2], sobre a iminência da reforma agrária, na qual anunciava, desde o título provocante: “Conosco, sem nós ou contra nós, se fará a reforma rural” (ENGELKE, 1976, p. 43-53). Esse documento do bispo Engelke “é significativo porque expõe, sem procurar disfarçar o contexto ideológico, ideias e preocupações que se manterão no centro das inquietações da igreja nas décadas seguintes” (MARTINS, 1999, p. 100). O documento alerta para os problemas que o êxodo rural estava causando aos fazendeiros, privando-os de mão de obra econômica e abundante. E também assinala o risco de a Igreja perder seus fiéis na cidade com a transformação dos camponeses em operários nas fábricas, onde a atuação dos militantes do Partido Comunista era mais incisiva. A Carta Pastoral do bispo Engelke alertava para o “perigo comunista”: “E os agitadores estão chegando ao campo. Se agirem com inteligência, nem vão ter necessidade de inverter coisa alguma. Bastará que comentem a realidade, que ponham a nu a situação em que vivem ou vegetam os trabalhadores rurais” (ENGELKE, 1950, p. 45). E conclama os proprietários de terra: “Antecipai-vos à revolução” (ENGELKE, 1950, p. 46).


A experiência concreta do crescimento econômico na ampliação do capitalismo no Brasil fez parte da Igreja migrar de uma postura moral para uma postura política com relação à questão agrária, que “é uma entre outras expressões das contradições do capital” (MARTINS, 1983, p. 18). E revelou também que o subdesenvolvimento do País não era falta de desenvolvimento – melhor dizendo, envolvimento -, mas consequência do crescimento econômico dos países capitalistas do norte. Logo se transitou da defesa de desenvolvimento de um capitalismo inacabado para um capitalismo inviável. “As esperanças que a igreja depositou na ação do Estado e no desenvolvimento econômico por ele induzido foram corroídas mais ou menos depressa(MARTINS, 1989, p. 46).


A história social da terra e da luta pela terra na Amazônia acabou colocando em xeque a ideia da Igreja de que dentro do próprio capitalismo se poderia resolver o problema social da miséria imposta aos camponeses. Em confronto com a realidade dura do capitalismo alastrando-se na Amazônia, parte da Igreja se movimentou de uma postura de solidariedade aos camponeses posseiros para um compromisso com a luta pela terra enquanto questão política, o que inclui Opção pelos Pobres e Opção de Classe. No livro O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, José de Souza Martins analisa: “A Amazônia pôs a Igreja diante da evidência de que o capital e o desenvolvimento capitalista maciços, ao contrário do que se supunha, podiam criar problemas sociais de tal gravidade, que se equiparavam ou superavam os gravíssimos problemas da miséria rural do Nordeste. Até então, o conjunto das ideias que norteavam as concepções e ação da Igreja em relação à questão agrária estavam centralizadas no princípio de que o progresso promoveria a equitativa distribuição dos bens, isto é, o próprio capital poderia resolver a questão agrária(MARTINS, 1999, p. 124-125).


Enfim, já está demonstrado que quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais ocorre concentração de terra e poder, mais devastação socioambiental acontece. Neste contexto, realizar reforma agrária popular e os Povos Originários (Indígenas) e Tradicionais resgatarem todos os seus territórios – missão de todos/as - não é panaceia para a superação de todas as injustiças, mas é condição sine qua non para superarmos o sistema do capital e construirmos uma sociedade do Bem Viver e Conviver com justiça econômica, sustentabilidade ambiental, solidariedade social, responsabilidade geracional e respeito à pluralidade cultural e mística. Que a Igreja resgate cada vez mais sua Opção pelos Pobres; a Igreja-Povo mesmo, não atrelada ao poder. Isso passa necessariamente pela derrubada da tese injusta do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal."


Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.


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