"Em janeiro passado, derrotado nos votos populares, Donald Trump intentou colocar tanques nas ruas de Washington. Não conseguiu, pois os principais chefes militares ficaram com a Constituição. Os partidários do presidente que invadiram o Capitólio prestam contas à Justiça. Joe Biden foi confirmado pelo Congresso, tornou-se presidente dos Estados Unidos e Trump se retirou com desonra e sem admitir a derrota eleitoral e judicial. Bolsonaro não deixou por menos ao dizer que a eleição americana foi fraudada e que poderá haver fraude eleitoral e violência no Brasil se não for adotada a impressão do voto em urna.
A marca do presidente Jair Bolsonaro é a ameaça contra a democracia. Diz contar com as Forças Armadas para tudo. Generais do núcleo do poder falam em romper a corda. Um general me disse, acerca dessa jactância: “Não fui consultado, falam por si mesmos”.
10 de agosto de 2021 é a data da mais contundente ameaça militar contra a democracia na vigência da Constituição de 1988: Bolsonaro colocou tanques nas ruas. Ou melhor, a Esplanada dos Ministérios foi palco do amedrontador desfile de tanques da Marinha, quando da votação da PEC, de interesse e inspiração de Bolsonaro, que adotaria a impressão dos votos registrados em urnas eletrônicas. Tendo consigo o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças, Bolsonaro foi adulado com a inadequada entrega de um convite pelo comandante da Marinha, que poderia tê-lo feito discretamente, como convém em circunstâncias tão tensas e perigosas. As explicações dos comandantes foram constrangedoras, com argumentos inaceitáveis. Fala-se até que o Exército foi apanhado de surpresa com a decisão do presidente, do ministro da Defesa e da Marinha.
As principais autoridades políticas reagiram à altura do momento, com críticas pertinentes e bem fundamentadas. A Câmara dos Deputados derrotou a PEC de Bolsonaro e o Senado aprovou a Lei de Segurança do Estado Democrático de Direito, que revogou a Lei de Segurança Nacional. Em suma: Bolsonaro ameaça com a força militar e perde no embate político. Até quando?
Duas decorrências do desastroso e antidemocrático passeio dos tanques. Primeira: Bolsonaro manda nas Forças Armadas, que com ele retornaram ao poder e são recompensadas com recursos, 6 mil nomeados na administração militar deste governo civil, salários ampliados, tempo ilimitado para o exercício de função civil fora das carreiras, superação do limite constitucional dos vencimentos e salários, previdência, etc. A defesa nacional está praticamente fora da agenda do presidente. Fala-se, isso sim, do uso político do Ministério da Defesa. O ministro, general Braga Netto, é um chefe político, não apenas o administrador das Forças Armadas. Segunda: Bolsonaro apequenou as Forças Armadas (e o Brasil) ao expô-las na condição de “minhas Forças Armadas”. Na imprensa internacional, nosso país aparece como uma republiqueta cujo presidente é candidato a ditador.
O desfile de tanques decorreu de uma decisão do partido militar para obedecer e agradar a Bolsonaro, mas certamente causou desconforto e preocupação em significativos setores das Forças Armadas. Lembremos: o partido militar expressa o ativismo de setores militares e contradiz o que devem ser essas instituições no sistema democrático – neutras, apolíticas, apartidárias, referidas à defesa e preservação do Estado; estimula as dissensões internas, conflita com a disciplina e a hierarquia.
Dois dias depois do passeio dos tanques, Bolsonaro afirmou aos generais recém-promovidos que as Forças Armadas o apoiam inteiramente e exercem o poder moderador: “O momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador, nas mãos das Forças Armadas a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia e o apoio total nas decisões do presidente para o bem da sua nação”. Poder moderador é a versão light do poder interventor. A verdade é que as Forças Armadas também se acham sob ameaça antidemocrática.
Paradoxo dos paradoxos: Bolsonaro é o único ator político relevante a postular a luta armada! Armas para a população, armamentismo: eis uma ameaça veraz contra a democracia. Interessa-lhe construir um cenário de crise institucional, de violência, então o caos legitimará a intervenção militar, à margem de toda consideração legal. Com o seu povo armado nas ruas, o conflito poderá assumir proporções inimagináveis.
Vale recordar: no final de março, os então comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa foram demitidos porque não ameaçaram o Supremo Tribunal Federal (STF), como queria Bolsonaro. Em 10 de agosto, por ordem do presidente, os tanques ameaçaram o STF e o Congresso Nacional. No dia 12, Bolsonaro anunciou o poder moderador exercido pelas Forças Armadas. Nas redes sociais fala-se em parar o Brasil no 7 de Setembro."
"Março foi grave, agosto é gravíssimo."
Eliézer Rizzo de Oliveira é CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR APOSENTADO DA UNICAMP
Fonte: Estadão
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