"O discurso de que o povo brasileiro é amigável, conformado, cordial (como no clássico de Sérgio Buarque de Holanda), acaba por vender um discurso reacionário, que oculta a verdadeira história do país.
Movimentos armados, manifestações populares, conspirações, rebeldes e revolucionários sacudiram a história do Brasil desde os tempos coloniais. O fato é, que como mostraremos, o povo brasileiro nunca foi de aceitar calado as ordens injustas impostas pelos de cima.
Carla Anastasia estuda os movimentos que sacudiram a colônia. A autora compreende as manifestações que ocorreram em Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, por meio do conceito de “economia moral” desenvolvido por Edward Thompson. Divide dois tipos de atuação dos atores rebeldes: a que considera “dentro das regras do jogo colonial”, na qual a tradição e a legitimidade tiveram papel significativo; e aquela “referida às formas políticas coloniais” que colocava em xeque as regras do jogo estipuladas para arbitrar as relações entre metrópole e colônia.[1]
O primeiro tipo se encaixa perfeitamente no conceito de economia moral, pois os atores lutaram pela manutenção de determinados procedimentos tradicionais que eram considerados “justos”. Procurava-se, portanto, “restaurar um equilíbrio tradicional” que estava sendo violado pelas autoridades. Já o segundo tipo enquadra as revoltas escravas que, segundo Anastasia, apresentavam uma perspectiva mais ampla, envolvendo vários segmentos da sociedade que tentavam reorganizar as relações de poder entre a comunidade e os setores dominantes. Estes últimos adotavam atos de vandalismo, mortes e estupros como formas de luta.
A autora destaca que o primeiro tipo de movimento era marcado por uma população que aceitava as regras do jogo colonial e lutava nos seus parâmetros, procurando preservá-las como, de início, haviam sido acordadas. Do segundo tipo, Anastasia destaca uma revolta escrava, em 1719, que começou na Comarca do Rio das Mortes e se espalhou por toda a capitania. Nela veio à tona o mito do Rei Negro. Os rebelados escolheriam um rei negro para fundar uma “república negra” após o extermínio da população branca da capitania. Havia um medo dessas sublevações contaminarem as outras manifestações menos radicais. As autoridades queriam evitar, de acordo com a documentação, um novo Palmares.
Quando se fala em quilombos, a mais marcante resistência escrava no Brasil, pensa-se logo em Palmares, do glorioso Zumbi, mas existiram diversos acampamentos de negros fugidos espalhados pelo Brasil. Em Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas, Goiás e Rio de Janeiro, estendendo-se no tempo até os tempos do Império.
É preciso destacar nesta historiografia as pesquisas desenvolvidas por Flávio dos Santos Gomes que denomina de “campo negro” a rede complexa de relações sociais que adquiriu uma lógica própria. Conexões entre os escravos fugidos e o comércio da região, além de uma teia maior de interesses e relações sociais diversas, da qual os quilombolas souberam tirar proveito fundamental para aumentar a manutenção de sua autonomia.[2]
Entre os conflitos dentro das regras do jogo colonial tivemos a Revolta da Cachaça na região rural de São Gonçalo, Rio de Janeiro, onde a “população aclamou Agostinho Barbalho Bezerra como novo governador revolucionário”.[3] Tivemos a revolta das elites de São Luís do Maranhão que estavam enfurecidas com os religiosos que dificultavam a escravidão indígena.[4] O “Motim do Maneta” em Salvador em 1711 e a Revolta de 1736 no sertão do Rio São Francisco, em Minas Gerais. Tivemos, também, os colonos que se rebelaram em Santa Maria de Belém na Páscoa de 1755 com o intuito de entregar o território do Grão-Pará à França e jurar fidelidade a Luís XV.[5]
Cabe lembrar a guerra dos Mascates na primeira metade do século XVII, na qual os não nobres de Recife lutaram por direitos, os quais os senhores de engenho se negaram a atender.[6] No mesmo período ocorre a Guerra dos Emboabas. “De um lado, paulistas como Borba Gato defendiam com unhas e dentes prerrogativas até então garantidas pela Coroa portuguesa; de outro lado, forasteiros de diversas localidades procuravam se imiscuir nas redes de poder e de controle de circuitos mercantis”.[7]
Um conflito que ficou marcado pela disputa entre colonos e jesuítas pelo domínio da mão de obra indígena foi a Revolta de Beckman, que eclodiu no Maranhão em 1684.
Os índios resistiram de várias formas. Os sertanejos, os assassinos de índios, revoltaram-se contra os padres, estes, por sua vez, também se revoltaram contra os sertanejos e, inclusive, criaram exércitos de índios guerreiros para proteger as aldeias dos ataques bandeirantes, como explica o historiador John Monteiro. As contradições e os conflitos se acentuaram na década de 1540. Estão registradas as revoltas na Bahia, em 1545; em São Tomé, em 1546; no Espírito Santo e em Porto Seguro no mesmo ano.
Os índios ofereceram resistência à invasão de suas terras. “No litoral sul, houve uma aliança dos Tupinambá de muitas aldeias do Rio e até de São Paulo, formando com outros índios o que ficou conhecido como a Confederação dos Tamoios.”[8]
Para João Pinto Furtado, a Inconfidência Mineira “seria antes um ‘motim de acomodação’ no interior do Antigo Regime”. Já “a semântica e a sintaxe ‘revolucionários’, de ruptura mesmo com os padrões do Antigo Regime, eventualmente, poderiam estar mais presentes na Bahia de 1798”, a Conjuração Baiana.[9]
Ato simbólico em homenagem ao Dia da Inconfidência realizado na Praça Tiradentes, em Ouro Preto, região Central de Minas Gerais (Foto: Gil Leonardi/ Fotos Públicas) |
A historiografia recente não entende a vinda da Família Real portuguesa como uma mera fuga da expansão napoleônica, mas como uma maneira do Império Ultramarino conter, com a mudança da capital e do centro de poder, as conspirações coloniais. Um plano que não foi bem sucedido. Até porque em 1817, em Pernambuco, “ainda sob a presença da corte joanina nos trópicos, um movimento político cujo objetivo era instituir um regime que pretendia ser, no final das contas, republicano”.[10]
Em 1820, uma tropa de milicianos comandada por um oficial bêbado atacou uma comunidade no alto do Rodeador, em Pernambuco, a partir de informações de que lá havia “um grande agrupamento de desertores e delinquentes que, professando crenças sebastianistas, pretendia pegar em armas para derrubar o governo da capitania”.[11] Mas no fundo, havia o interesse, como mostra a tese de Guilhermo Palacios, “de expropriação do campesinato nordestino”.[12]
A ideia de que a Independência foi um ato pacífico é uma outra farsa criada para construir o mito do brasileiro conformado. Poucos ouviram o suposto grito da Independência. Isso porque as elites encasteladas no Rio de Janeiro se comportaram como a antiga metrópole, “agora na América, não só em relação às demais capitanias do Brasil, mas até ao próprio território europeu”, explica a professora Lucia Bastos Pereira das Neves.[13]
Na Bahia, a guerra foi longa e cruenta, de modo que o Exército Pacificador de D. Pedro I só teve êxito em 2 de julho de 1823. No Grão-Pará “uma revolta contra portugueses e estrangeiros em geral resultou no massacre de mais de 250 pessoas”.[14] E no Piauí, Maranhão e Pará, grupos dominantes “teriam maiores vantagens na união com Portugal do que com o Rio de Janeiro, pois as comunicações eram mais fáceis com Lisboa”.[15] No Rio de Janeiro, milicianos bancados pelos fazendeiros tiveram que impedir que as tropas portuguesas embarcassem o príncipe D. Pedro à força para Portugal.[16]
Após a Independência, a Confederação do Equador uniu o povo contra as pretensões absolutistas de D. Pedro I por um sentimento antilusitano temperado pelo medo de recolonização do Brasil, como bradava o “revolucionário” frei Caneca.[17]
Contudo, nem todos os pernambucanos, como explica o historiador Marcus J. M. de Carvalho, ressoavam “o liberalismo erudito dos padres de 1817 ou de frei Caneca em 1824”.[18] Para além, “há muita coisa fora dessa lógica simplista na Cabanada (1832-1835), nos ataques quilombolas nas décadas de 1820 e 1830, na resistência escrava e indígena, no movimento dos trabalhadores livres pobres às vésperas da Revolta Praieira, ou no Ronco do Maribondo”.[19]
Segundo José João Reis, na Bahia, entre 1807 e 1835, houve vinte revoltas de escravos. Com destaque para a dos Malês (1835) de grande participação de cativos muçulmanos, evento que se repetiu em 1853.
Após o Código Criminal de 1830, os termos “revolucionário” ou “revoltoso” foram usados para designar os participantes de diversos movimentos, por exemplo, na Cabanagem, Farroupilha, Sabinada, Balaiada, na Revolta Liberal de Minas Gerais e São Paulo, na Praieira e no Ronco da Abelha. Mas é lógico que a palavra “revolução” não tinha o mesmo sentido de hoje, inclusive, os participantes das revoltas raramente usavam o termo por causa da sua conotação negativa.[20]
Na Setembrizada, soldados de baixa patente e escravos fugidos tomaram as ruas centrais de Recife por 36 horas.[21] A Novembrada, no mesmo ano (1831), tinha uma reivindicação que “interessava a massa local de desempregados: a expulsão de todos os cidadãos portugueses solteiros que possuíssem menos de dois contos de réis em bens ou renda”.[22] No Nordeste também houve revoltas de cunho mais reacionário como a Revolta de Pinto Madeira e a Abrilada que defendia a restauração da monarquia de D. Pedro I que abdicara há pouco.
Por já termos mencionado as revoltas regenciais, não seria necessário entrar em detalhes. Assim como as que acometeram o Império na primeira década do Segundo Reinado. Mas nos anos 1850, um período de relativa estabilidade, houve a greve dos escravos de ganho na Bahia, com protesto na rua em 1857 e com a ocupação da Praça do Palácio, no centro de Salvador em 1858. O Jornal da Bahia de 5 de junho de 1857 chegou a chamar o movimento dos escravos de “revolução dos ganhadores”.[23] Já o movimento de 1858 foi contra a carestia e ficou conhecido como “Carne sem Osso e Farinha sem Caroço”, grito de protesto dos manifestantes.
Já durante um contexto de crise do Império, a população livre e pobre da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas se revolta contra a prática do sistema métrico decimal em um movimento conhecido como Revolta do Quebra-Quilo. O que havia, na verdade, era o aumento da exploração sobre os camponeses para compensar a queda nos preços. É muito comum a reação popular diante de uma alteração dos costumes em comum, como já explicou o historiador inglês Edward Thompson.[24]
Outra revolta popular nos fins do Império foi a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro. “Comícios públicos, destinados a protestar contra o imposto de um vintém sobre as passagens dos bondes urbanos acabaram em violência nas ruas.”[25]
Os grandes eventos, como a proclamação da República, podem ter sido ministrados pelas elites, mas a população, como sempre, continua a protestar, não importa sob a égide de que regime ou de que pessoa ocupa o cargo supremo do Executivo.
A primeira República foi marcada por diversas revoltas que, igualmente como nos períodos precedentes, não temos espaço e nem competência para detalhar. Mas precisamos mencionar as mais marcantes.
Revoltas rurais se mostram como uma reação à República, mas são também consequência da exploração sobre o campesinato. Canudos e Contestado são as mais destacáveis, nas quais problemas sociais e uma verdadeira luta de classes são encobertas pelo sebastianismo popular.
Passando pelas revoltas não tão populares como a da Armada e a Federalista, enquanto a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, parecia mais uma reação ao novo regime e à repressão, a Revolta dos Marinheiros em 1910 entendia que “era fundamental conquistar a cidadania para exigir melhores condições de trabalho”.[26]
Já havia um programa do Partido Operário Brasileiro em 1893, mas a classe operária causa impacto apenas nas greves de 1917 e 1919 quando a repressão sobre os trabalhadores organizados aumenta radicalmente atingindo “seu ápice sob o governo de Arthur Bernardes (1922-1926)”.[27]
Mas o único movimento de força contra as oligarquias na década de 1920 foi o tenentismo.[28] Esse movimento promoveu três levantes de expressão: A Marcha dos 18 do Forte, a Coluna Miguel Costa que mais tarde se uniu à Coluna Prestes, sem dúvida, o maior movimento dos tenentes.
Na década de 1920 também tivemos a criação do PCB, partido que passou a ter protagonismo na condução do movimento dos trabalhadores.
Getúlio Vargas assume o poder, mas logo sofreu resistência pelo povo historicamente inquieto. Em São Paulo ocorreu a Revolução Constitucionalista em 1932 e em 1935 veio à tona um ensaio de um levante comunista liderado por Luiz Carlos Prestes.
Mas Vargas com a ideologia do trabalhismo controla os sindicatos e promove uma ditadura na qual dissemina uma visão do Estado como o protetor dos pobres. Cria diversos benefícios para os trabalhadores, o que no futuro irá forjar uma economia moral da classe operária.
Após o governo Vargas, principalmente durante a Terceira República (1945–1964), as manifestações operárias exigiam o cumprimento das Leis Trabalhistas. A grande massa dos trabalhadores elege Vargas em 1950, mas os planos de modernização do Brasil ao lado das melhorias de condições da classe trabalhadora foi alvo de protestos por parte dos empresários nacionais e internacionais e da imprensa, culminando assim no trágico suicídio de 1954.
Foram diversas as greves que se seguiram a partir de então. A Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, torna-se um “barril de Pólvora”, segundo os jornais, num contexto associado “à intensificação das lutas camponesas”, nos primeiros anos da década de 1960.[29]
Na Praça da Sé, na capital paulista |
O golpe de 1964 trouxe à tona esses movimentos acusando-os de comunistas e subversivos para assim legitimar a repressão.[30] Contudo, a ditadura civil-militar desencadeou dezenas de guerrilhas que resistiram ao acirramento da repressão, das quais destacaram-se a Ação Libertadora Nacional (ALN), o Comando de Libertação Nacional (Colina), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
Marcelo Redenti mostra que essas organizações tinham como objetivo “não só derrubar a ditadura, mas também caminhar decisivamente rumo ao fim da exploração de classe, embora houvesse divergências entre as organizações sobre como chegar ao socialismo”.[31] Ele conta do movimento de mulheres contra a ditadura, que eram associações de bairro, em especial nas capitais que reuniam mulheres, de diversas classes sociais com o único intuito acabar com a ditadura.
É fato que com a redemocratização, movimentos mais intensos contrários ao sistema tornaram-se tímidos, praticamente inexistentes. Reduzida apenas a partidos radicais, esse tipo de resistência se isola ainda mais nas “bolhas” criadas a partir na propagação das redes sociais.
As lutas identitárias também contribuíram para a extinção de lutas antissistêmicas. Contudo, estas reivindicações pós-modernas estão presentes na mentalidade do brasileiro médio, fomentando polêmicas e críticas tanto dos que se posicionam a favor quanto dos contrários a tais pautas.
Enfim, é preciso trazer à tona a ideia de que o povo brasileiro nunca foi conformado. Essa visão foi forjada pelas elites que manipulam a historiografia desde o século XIX. O objetivo é fabricar uma “cultura do silêncio” na qual o oprimido se cala, não encontra inspiração para lutar por melhores condições de vida, enquanto o opressor apresenta a solução que o favorece, como se fosse o único caminho a ser seguido. Nos ocultam a verdadeira história para não termos uma base de orientação legitimada pelo tempo.[32]
O povo brasileiro é guerreiro, não no sentido “resiliente”(capazes de manter a calma diante adversidades), num de tipo persistência manipulada que quer disseminar a ideia de que nos adaptamos a tudo que é imposto a nós, mas no sentido revolucionário, de resistir o que nos é imposto, na luta por direitos e justiça social."
Bibiografia: "O mito do brasileiro conformado"
Fonte: Le Monde, deplomatique, Brasil
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