Procuradora Regional da República, Eugênia Augusta Gonzaga FOTO: MARCELO CHELLO/ZUMA WIRE/FOTOARENA |
"Dispensada da Comissão de Mortos
e Desaparecidos, Eugênia Gonzaga
teme a sabotagem do trabalho"
“A
procuradora regional Eugênia Gonzaga tinha uma extensa experiência
na investigação de crimes da ditadura quando assumiu a chefia da
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em 2014. Por
mais de uma década ela integrou a equipe de identificação das
ossadas da vala clandestina de Perus, além de liderar as primeiras
iniciativas para responsabilizar torturadores e cúmplices, entre
eles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o médico Harry
Shibata, acusado de assinar laudos necroscópicos falsos de vítimas
dos porões do regime. Lutou ainda pela condenação do Brasil na
Corte Interamericana de Direitos Humanos pela morte de Vladimir
Herzog. “Depois disso, o tema passou a ser tratado como compromisso
institucional do Ministério Público”, lembra.
Desde
a instalação da comissão, em 1995, foram reconhecidas 479 vítimas
da ditadura. O trabalho acabou, porém, interrompido de forma abrupta
por Jair Bolsonaro. Na quinta-feira 1º, o ex-capitão exonerou
Eugênia Gonzaga e outros três integrantes do grupo. No lugar
assumiram um ex-assessor da ministra Damares Alves, um deputado do
PSL e dois militares reformados defensores do regime. Nunca antes um
chefe da equipe havia caído sem que o presidente pedisse uma
indicação de substituto à Câmara dos Deputados. A canetada
ocorreu uma semana depois de a Comissão ter emitido a certidão de
óbito do pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o mais
recente alvo dos impropérios de Bolsonaro. O ministério de Damares
garante, porém, que a troca estava em pauta havia mais de dois
meses.
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Eugênia
Gonzaga teme a interrupção dos trabalhos da comissão. “Desde que
o secretário Sergio Queiroz, titular da Secretaria Nacional de
Proteção Global, assumiu, a única pergunta dele sobre Perus foi:
‘Quando termina? Eu quero encerrar isso’.” Na entrevista a
seguir, a procuradora analisa ainda a cruzada bolsonarista contra os
órgãos de participação da sociedade civil.
CartaCapital:
O que há de mais aberrante nesta decisão?
Eugênia
Gonzaga (EG): A
incompreensão do presidente sobre o significado de comissões,
conselhos, dos mecanismos de democracia participativa. Os conselhos
existem justamente para cuidar de temas que o governo não reuniu
conhecimento suficiente. Se é para ter uma reunião de órgãos do
governo, basta marcar, não precisa alterar um conselho. É uma coisa
esdrúxula. Choca também a falta de vontade de compreender. É óbvio
que ele sabia que não precisaria trocar a composição da comissão.
Os familiares, inclusive, pediram a nossa permanência. Fizemos
reunião com os primeiros escalões, apresentamos os grupos de
trabalho… Estávamos à disposição para permanecer cuidando desse
assunto, que é muito delicado: tem frentes em andamento, exames de
DNA, toda essa dedicação em Perus, diligências pelo interior… Em
princípio, nos disseram que iriam apenas repor duas vagas
disponíveis. Depois, a própria ministra admitiu que, desde maio,
ela pedia a troca na composição. Houve aí uma quebra de confiança.
CC:
Uma das cadeiras do Ministério Público por pouco não foi entregue
ao seu colega Aílton Benedito, famoso pelas posições
conservadoras…
EG: Conservador
é elogio. Ele tem uma posição de barbárie, diz que as vítimas
são “comedores de ração humana”, comunistas, esquerdopatas. Declarações extremamente ofensivas às famílias. A questão aí é
não entregar os corpos. E isso é barbárie, não posição
ideológica.
Bolsonaro e Damares e atrás, Paulo Guedes FOTO: ISAC NOBREGA / AFP |
CC:
A nomeação da ministra Damares Alves afetou o trabalho da comissão?
EG: Sim.
Ela nitidamente quer encerrar os trabalhos de buscas aos
desaparecidos políticos. Diz que “não dá para viver do passado”.
É revoltante quando ela pede para acelerar, pois simplesmente ela
emperrou todo o processo desde que entrou. Fomos impedidos de
acelerar porque a própria Damares não assinou o documento que
garante à comissão verbas para as perícias. Desde 2015, a comissão
depende de emendas parlamentares. O dinheiro fica depositado na conta
de um projeto de cooperação. Quando houve a troca de governo, houve
um novo pedido para ratificar esse apoio. Esse aval só veio agora,
em julho, depois de muito custo.
CC:
Não seria importante agilizar esses processos, até para confortar
os familiares?
EG: O
que ela considera avançar não é ampliar as buscas, é dá-las por
encerradas e se dedicar apenas aos desaparecidos do presente. Como se
desse para encerrar. Eles não apontaram onde estão os corpos.
Procuramos agulha no palheiro. Até hoje não sabemos onde enterraram
aqueles que morreram, por exemplo, na Casa da Morte, centro
clandestino de tortura e assassinatos em Petrópolis. Virou pó. E, o
pior, eles têm chamado essas vítimas de “desaparecidos civis”.
Desaparecidos Políticos - Possivelmente mortos pela Ditadura Militar |
Eu
acompanho de longe e estou muito preocupada com este novo plano de
buscas e essa categoria. Hoje em dia, embora haja casos de
desaparecimentos comuns, mais de 50% são pobres, negros, moradores
de favela. E isso está relacionado à violência do Estado. Mas,
quando você lê o Plano Nacional de Pessoas Desaparecidas, fica
muito claro que eles, basicamente, se referem a crianças.
“O que a ministra Damares considera avançar não é ampliar as buscas, é dá-las por encerradas”
CC:
Apesar da má vontade do governo, o que gostaria que fosse feito por
esta nova equipe nomeada pelo presidente?
EG: Gostaríamos
de reconstituir os autos de cada uma dessas operações, conforme
manda o Código de Processo Civil. O Exército é sempre muito
organizado. Era, obviamente, uma sistemática, baseada em um
procedimento, documentada. Só que eles simplesmente afirmam ter
destruído os autos. Seria preciso que o Ministério da Defesa
informasse onde estão os corpos. Nenhum presidente da República
exerceu seu papel de comandante-em-chefe das Forças Armadas para
exigir essa informação. Nem durante a Comissão da Verdade
aconteceu.”
Fonte:
Carta Capital
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