“Veja
algumas ideias para criar municípios que acolhem e estimulam a
presença da geração 60+ nos espaços públicos”
*Por
Leticia Sabino, com colaboração de Andrew Oliveira, Fernanda
Pitombo e Ana Laura Costa.
“Frankie
se programa para ir a um restaurante com uma amiga, mas o plano vai
por “água abaixo” por conta de um semáforo que não garante o
tempo suficiente para que a sua amiga, idosa como ela, possa
atravessar a rua. Incomodada com a situação ela procura o órgão
responsável que então marca uma auditoria na travessia para avaliar
o tempo médio das pessoas que atravessam na faixa apontada em um
período de 3 horas. Em determinado momento ela reflete sobre a
impossibilidade de atravessar no tempo do semáforo. “Sabe o que é
isso? Discriminação contra idosos. Esse semáforo é rápido demais
para qualquer um com mais de 60 anos.” Para conseguir o que
precisam, mais tempo para atravessar a rua, ela tem que mobilizar
todos seus amigos e amigas de sua faixa etária para passar por lá
durante a auditoria, ajudando assim, a baixar a velocidade média.
Após todo esse esforço, o grupo celebra os míseros 3 segundos que
são acrescentados para os pedestres.
Esse
enredo é do episódio chamado Faixa
de Pedestres da
série Grace
e Frankie,
sobre duas idosas no Estados Unidos, que apresenta o problema de
forma cômica. Porém esta situação trágica é muito mais
recorrente e grave na vida real das cidades, a qual demanda seriedade
e compromisso para ser enfrentada. A construção de cidades que
acolhem e estimulam a presença da geração 60+ nas ruas é possível
através da prioridade do caminhar de forma efetiva nas cidades.
Caminhar na cidade após os 60 anos é vital
Caminhar
é o meio de deslocamento mais utilizado nas cidades brasileiras e
também o mais democrático. Segundo John Butcher, fundador da
instituição britânica que atua pelo caminhar, Walk21,
“caminhar é a primeira coisa que se deseja fazer, quando criança,
e a última que se quer deixar de fazer ao envelhecer” (tradução
livre). Quando se fala na população idosa, andar a pé é vital,
sendo de grande importância para encontrar pessoas, manter a saúde
e o equilíbrio.
De
acordo com Allen Glicksman, diretor de pesquisa e avaliação da
Corporação da Filadélfia para Envelhecimento, a caminhabilidade
deveria ser considerado importantíssima na gerontologia, já que
mantém a mente e o corpo ativo através do entorno e da rotina que
propicia às pessoas. Ele chama atenção para o fato de os programas
de saúde para idosos ignorarem uma parte essencial para garantir
saúde, longevidade e qualidade de vida: os bairros.
O
guia da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Cidades Amigáveis
para Pessoas Idosas (em inglês Age-Friendly
Cities)
aponta alguns elementos dos espaços públicos essenciais para que a
cidade seja amigável, entre eles, “calçadas amigáveis para
pessoas idosas”; “lugares para descansar nas ruas” como bancos
para sentar nas calçadas e praças no caminho; “travessias
seguras” apontando medidas de acalmamento de tráfego; e claro,
medidas de acessibilidade.
Ainda
que por um lado existam pesquisas e manuais evidenciando princípios
e elementos para gerar cidades que acolham as pessoas idosas. Por
outro lado, a realidade das condições dos espaços públicos é bem
diferente, e as consequências, drásticas.
Desafios da mobilidade a pé agravados com a idade
Caminhar
é o modo de se deslocar nas cidades que recebe menos investimento em
infraestrutura e que sofre as consequências mais severas ao não ser
verdadeiramente tratado com prioridade. Uma grave consequência são
os atropelamentos que, na cidade de São Paulo, matam ao menos uma
pessoa por dia. Tal consequência pode agravar-se com a idade, 36%
dos atropelamentos fatais na cidade atingem pessoas com mais de 60
anos de idade (segundo Relatório de Acidentes de Trânsito da CET).
Um
dos culpados por este resultado violento é o tempo disponível para
atravessar as ruas quando há semáforos. Um estudo feito na
Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP apontou que 97,8% dos
idosos em São Paulo não caminham na velocidade adotada como padrão
pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-SP) para regular os
semáforos. Enquanto a velocidade adotada é de 4,3 km/h, a média
calculada com os participantes do estudo foi de 2,7 km/h. Mostrando
claramente que a cidade não está sendo planejada para todas as
pessoas se deslocarem com segurança.
TRAVESSIA AO LONGO DE TRAJETO A PÉ. (FOTO: FREDERICO LEVY) |
José
Leopoldo Ferreira Antunes, professor titular da FSP e orientador da
pesquisa, destacou a importância dos resultados para constatar como
a cidade não é regulada e pensada para as pessoas idosas, tendo
como efeito o confinamento em casa. Como o caminhar proporciona bem
estar, a saúde e a interação social, alguns obstáculos, como a
dificuldade nas travessias, relacionam-se diretamente com a perda de
qualidade de vida e autonomia da pessoa idosa.
Etienne
Duim, uma das autoras do artigo, que publicou os resultados da
pesquisa no Journal
of Transport & Health,
afirma que São Paulo poderia adotar mudanças como as feitas na
Inglaterra e Espanha. Esses países reduziram a velocidade média de
pedestres em seus manuais, levando ao aumento do tempo para a
travessia. Essa mudança deve ser acompanhadas de outras medidas,
como diminuir a velocidade dos veículos na cidade e incentivar o uso
de transporte público. Essa combinação colabora para autonomia e
mobilidade da população idosa e na diminuição de acidentes por
atropelamento.
Curitiba
adotou uma alternativa para aumentar o tempo de travessia não só
para os idosos, mas também para pessoas com deficiência, grávidas
e pessoas com crianças pequenas. Seu funcionamento é induzido pelas
pessoas nas condições mencionadas, essas pessoas têm acesso a um
cartão o qual deve ser inserido em um dispositivo eletrônico
instalado no semáforo. Ao fazer isso, o tempo semafórico é
recalculado, permitindo que a pessoa tenha mais tempo para atravessar
a rua.
Porém, iniciativas assim tratam as pessoas beneficiadas como exceção ao invés de fazer cidades que sejam amigáveis para todos e todas, não sendo uma solução realmente inclusiva.
Porém, iniciativas assim tratam as pessoas beneficiadas como exceção ao invés de fazer cidades que sejam amigáveis para todos e todas, não sendo uma solução realmente inclusiva.
Outro
problema que atinge de forma mais aguda e extrema a população com
mais de 60 anos são as quedas nas calçadas. Apesar de ser difícil
de quantificar por não ser considerado acidente de trânsito, foi
feito um levantamento em 2012 pelo então ombudsman da
CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), Philip Gold, em que se
estimou que, em média, 171 mil pessoas sofrem quedas nas calçadas
da grande São Paulo por ano. O que segundo o levantamento gera um
custo social (incluindo resgate, tratamento e reabilitação) de R$
2,9 bilhões anualmente.
REGISTRO DE CALÇADA ESBURACADA DURANTE ATIVIDADE NO SESC CARMO. (FOTO: FREDERICO LEVY) |
Em
outro levantamento de atendimentos do pronto-socorro de ortopedia do
Hospital das Clínicas (HC) feito em 2009 e 2010, conclui-se que 45%
dos atendimentos da área são referentes a quedas em calçadas. Além
de toda a dor, desconforto e inconvenientes das quedas, elas podem
agravar o isolamento por limitar a mobilidade, ainda que
temporariamente, além de, em casos mais graves conforme a
intensidade da queda, poder até mesmo ocasionar a morte.
Esses
dois problemas, gerados pela ausência de condições tão
elementares, calçadas e travessias adequadas, apenas ilustram como
cidades que, de fato, não priorizam o modo a pé e não têm no
centro as pessoas e o caminhar, atingem alguns grupos de pessoas de
forma ainda mais grave, negando-lhes seu direito à cidade
cotidianamente.
Algumas ideias para cidades amiga da geração 60+
Em
junho deste ano, promovemos algumas atividades com pessoas idosas
para avaliarem a situação atual das cidades para caminhar e
proporem como seria uma cidade melhor para as pessoas de todas as
idades. Nessa provocação de soluções, consideraram-se não apenas
atributos físicos, mas também outros elementos de convivência nas
ruas que as fariam sair mais e explorar mais as cidades de forma
segura e confortável. Aqui, trazemos alguns elementos apontados e
projetos que já atuam para gerar cidades mais amigáveis às pessoas
idosas.
Respeito
é prioridade, seja para atravessar a rua, para poder sentar na
cidade e até mesmo pegar o ônibus. Desta forma, respeito não é
algo que ocorre só entre pessoas, mas também na relação com a
cidade. Quando não há onde atravessar em segurança as pessoas se
sentem e são desrespeitadas pela estrutura da cidade, por exemplo, o
mesmo acontece quando não há onde sentar-se ou informação dos
ônibus que passam.
Há
também bastante desrespeito das pessoas com que se interage nos
percursos pela cidade. O desrespeito de motoristas de ônibus é o
lembrado pela geração 60+ no seu dia a dia, as situações geradas
pela falta de paciência para os diferentes ritmos e necessidade, vão
desde avançar velozmente antes das pessoas se acomodarem no ônibus
até o fato de não parar no ponto onde há pessoas idosas.
Considerando
que as pessoas precisam compreender melhor as dinâmicas das pessoas
idosas para respeitá-las, a cidade ideal deve ter espaços públicos
que estimulem a interação intergeracional. Estes espaços podem
variar entre praças que contemplam públicos diversos e provoquem
sua interação e até mesmo equipamentos públicos e edifícios
históricos.
Uma
atividade que várias cidades adotam para promover esta aproximação
é conhecida como “biblioteca viva” em que pessoas idosas
compartilham seus conhecimentos e experiências com pessoas mais
novas.
Em Kuala Lumpur, capital da Malásia, além de compartilhar histórias de vida as pessoas são provocadas a compartilhar muitos de seus desafios na cidade que se agravaram com a idade, como o tempo para atravessar as ruas. Ao tomar este conhecimento, as pessoas mais novas participam de alguns workshops para ajudar a criar soluções para estes desafios. Outro exemplo de contato e relação intergeracional acontece em Santos, no litoral paulista, através do turismo. O programa intitulado de “Vovô Sabe Tudo” aloca pessoas idosas para trabalhar como guias e compartilhar conhecimento em pontos históricos e culturais da cidade. Assim, as pessoas idosas continuam muito ativas e valorizadas na cidade.
Em Kuala Lumpur, capital da Malásia, além de compartilhar histórias de vida as pessoas são provocadas a compartilhar muitos de seus desafios na cidade que se agravaram com a idade, como o tempo para atravessar as ruas. Ao tomar este conhecimento, as pessoas mais novas participam de alguns workshops para ajudar a criar soluções para estes desafios. Outro exemplo de contato e relação intergeracional acontece em Santos, no litoral paulista, através do turismo. O programa intitulado de “Vovô Sabe Tudo” aloca pessoas idosas para trabalhar como guias e compartilhar conhecimento em pontos históricos e culturais da cidade. Assim, as pessoas idosas continuam muito ativas e valorizadas na cidade.
IDOSO QUE ATUA COMO GUIA TURÍSTICO NO BONDE DE SANTOS. (FOTO: PREFEITURA DE SANTOS) |
Com
relação ao desrespeito das estruturas físicas, a solução é
simples: promover uma cidade que verdadeiramente prioriza quem está
a pé. Isso significa calçadas amplas, niveladas, sem buracos e sem
obstáculos. Travessias bem posicionadas, seguras e com tempos
adequados para diversos ritmos, com continuidade dos trajetos. Ou
seja, nada novedoso ou que não seja garantido por lei, mas que
dificilmente representa a realidade das cidades. Sendo assim urgente
que as cidades olhem as ruas desde a escala humana para garantir
estes direitos mínimos para se deslocar a pé.
Além
disso, são necessários programas que garantam ruas limpas, sem
ruídos excessivos e com rotas e locais muito bem sinalizadas.
Legibilidade e sinalização para as pessoas a pé se tornam ainda
mais essenciais para pessoas mais velhas e mulheres. Alguns exemplos
de projetos que promovem a comunicação e mapeamento das rotas e
territórios são o “Passeia Jardim Nakamura”, em São Paulo, e o
projeto “Rio a Pé” realizado no Rio de Janeiro antes da cidade
receber as Olimpíadas em 2016.
Árvores
frutíferas nas ruas geram relações mais próximas de interação e
convivência com a natureza da cidade, além de provocarem muitas
memórias afetivas ao “pegar frutas do pé”. Neste
sentido, a Câmara de Vereadores de Araraquara lançou no ano passado
o projeto “Nosso Pomar”, que consiste em plantar árvores
frutíferas pela cidade com objetivo de promover uma alimentação
mais diversa e saudável, pois as pessoas poderão colher e comer
frutas nas calçadas. Mesmo sem contar com projetos coordenados já
há muitas árvores frutíferas nas ruas e é possível consultar
onde em mapa colaborativo online.
Espaços
para descanso e contemplação da cidade também são necessidade
básica. Desde banco nas calçadas como criação de mais espaços
verdes e praças. Tomando São Paulo como base, e entendendo que esse
padrão deve se reproduzir em várias cidades, em que cerca de 70% do
espaço público é espaço viário, estratégias que transformam
área de vagas em pequenas praças, como os parklets, e até mesmo
programas de abertura de ruas para as pessoas como a Paulista Aberta,
certamente colaboram para a presença e conforto de idosos na cidade.
Vale lembrar que muitas vezes são as pessoas idosas que também
cumprem papel de cuidado de crianças enquanto os pais trabalham.
Dessa
forma, ainda que possa parecer que nossas cidades estão distantes do
ideal para acolher e respeitar a geração 60+ resolver esse problema
não requer ações impossíveis ou inviáveis. Entendendo que todos
os elementos apontados acima são parte das estratégias da criação
de bairros e cidades caminháveis é urgente a insistência para que
a prioridade da mobilidade a pé e a participação seja garantida e
executada.
Com
empenho, estratégia e atitudes nessa direção, teremos cidades
amigas dos idosos, idosas e pessoas de todas as idades. Onde se
envelhece com dignidade e participando da cidade, garantindo que
Graces e Frankies continuem caminhando, indo às praças e
interagindo com as pessoas de forma segura,
confortável e natural.”
Fonte: carta capital
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