terça-feira, 12 de maio de 2020

"Trabalho escravo contemporâneo: Brasil escravocrata"


    


 Por Gilvander Moreira é articulista deste jornal on-line e escreve às terças-feiras

"Por meio da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 11 a 15 de maio de 2020, acontece mais uma Semana de Comunicação em Combate ao Trabalho Escravo. Neste ínterim trazemos à memória o 132º ano da Lei Áurea, que dia 13 de maio de 1888, aboliu formal e mentirosamente a escravidão no Brasil. Trinta e oito  anos antes, em 1850, com a Lei 601, conhecida como Lei de Terras, reforçou-se o sistema escravista ao se afirmar que a única possibilidade de acessar a terra seria por meio da compra. Criou-se, assim, “o cativeiro da terra” (como bem denominou José de Souza Martins) antes de acabar com o cativeiro de seres humanos, em especial dos povos negros trazidos de forma forçada da África. Procedendo assim, juridicamente se pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de liberdade abstrata e formal. Com a Lei Áurea, os negros escravizados ao serem “libertos” acabavam de mãos vazias sem jamais ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprá-la. Consequentemente, de escravizados juridicamente se tornaram sem-terra, sem-teto, sem nada, iniciando o que muitos chamam de escravidão contemporânea.

Com requintes de crueldade a escravidão e o tráfico humano continuam a ocorrer sob diversas formas e cada vez mais atroz. No Brasil atual, que ainda mantém engrenagem escravocrata, o trabalho compulsório segue violentando a dignidade humana de milhares de trabalhadores e trabalhadoras cuja exploração parece se acirrar a cada ano. Devemos perguntar: O racismo arraigado contribui para a incidência de trabalho escravo? O povo negro é ainda o mais violentado com trabalho escravo? A pandemia do novo coronavírus agrava a escravidão contemporânea? Sim para as três questões, muito bem analisadas no livro “Entre o silêncio e a negação: trabalho escravo contemporâneo sob a ótica da população negra”, de Raissa Roussenq Alves, Ed. Letramento, 2018.

De acordo com a CPT, que desenvolve Campanha Permanente de Erradicação do Trabalho Escravo, nos últimos 24 anos, 54.778 trabalhadores e trabalhadoras em situação análoga à de escravidão foram libertados/as em todo o país. ‘Tronco’, ‘chicote’ e ‘correntes’ invisíveis à primeira vista e, muitas vezes, ocultados, continuam torturando, chicoteando e aprisionando milhares de pessoas cotidianamente. É considerada escravizada uma pessoa submetida a condições degradantes de trabalho, jornada exaustiva ou a alguma forma de privação de liberdade de ir e vir, inclusive, por meio de dívida ou de trabalho forçado. Segundo o art. 149 do Código Penal Brasileiro, reduzir alguém a esta condição é crime e a pena é de dois a oito anos de prisão, além de multa. Entretanto, no Estado cúmplice da escravidão contemporânea o número de fiscais do Ministério do Trabalho vem sendo gradativamente reduzido e a impunidade das empresas e patrões criminosos acabam estimulando a reincidência na prática da escravidão.

O desmonte dos direitos trabalhistas, o produtivismo, o trabalho por metas, a intensificação do ritmo de produção em tempo recorde, a terceirização, a quarteirização, a “uberização”, “o trabalho intermitente”, tudo isso vem precarizando as condições de trabalho, desumanizando milhões de pessoas e criando as condições objetivas para a intensificação do trabalho escravo no país. Verifica-se o aumento assustador do número de adoecimentos e de mortes por exaustão no trabalho, como ocorre no caso do corte de cana em canaviais.

Como integrante da Campanha “De olho aberto para não virar escravo!”, Hamilton Luz alerta: “Um dos grandes vilões é o desemprego (além da concentração de terra e falta da reforma agrária), a pessoa desempregada, na maioria das vezes, não pensa duas vezes antes de aceitar um emprego, e é nessas horas que os gatos, os aproveitadores da ‘miséria’ alheia dão o ‘golpe’.” Com a latifundiarização, uma política econômica que repassa anualmente quase 50% do orçamento para banqueiros reproduzindo, assim, uma das maiores desigualdades sociais do planeta, uma fração cada vez maior da classe trabalhadora é encurralada pela ‘precisão que obriga’ e pela ‘necessidade’ artificial, mas real, de ter que escolher entre morrer de fome um pouco a cada dia ou se submeter a trabalho escravo, mascarado muitas vezes. Nesse sentido Hamilton Luz comenta: “Conseguir emprego se tornou uma proeza tão difícil que, mesmo submetido a humilhações, violação de direitos, sendo tratado até pior que animal irracional, o/a trabalhador/a resiste à ideia de denunciar. Ainda mais quando a lei que protegia seus direitos sofre desmontes sucessivos como foi acontecendo a cada ano, ultimamente.”

No livro Conflitos no Campo Brasil 2019, a CPT, em sua 34º publicação anual, constatou que em 2019, 130 casos de trabalho escravo foram identificados em todo o país, envolvendo 1.208 trabalhadores e trabalhadoras, tendo sido 1.050 trabalhadores/as resgatados pelo Grupo Móvel Tático do Ministério do Trabalho e Polícia Federal, após denúncias da CPT e de outras organizações de Direitos Humanos. Só no estado de Minas Gerais, 346 trabalhadores foram libertados de situações análogas à escravidão, sendo 171 (49,4%) no norte de Minas, o que demonstra que, onde há maior poderio do latifúndio e dos latifundiários criam-se as condições objetivas para submeter trabalhadores a situações análogas às de escravidão. Esses números são muito aquém da realidade, pois o encobrimento do trabalho escravo é enorme. Em 2019, as ocorrências se deram em trabalho na pecuária e lavouras do agronegócio, em carvoarias, na mineração, em confecção de roupas, na construção civil e em serviços diversos. Atualmente há trabalho análogo à situação de escravidão não apenas na agricultura sob o regime do agronegócio no campo, mas, principalmente, nas grandes cidades em atividades diversas cujo tempo de trabalho é cada vez mais extenso. Neste contexto nos cabe não deixar cair no esquecimento o assassinato de quatro fiscais do Ministério do Trabalho mortos barbaramente no dia 28 de janeiro de 2004, em Unaí, no noroeste de Minas Gerais, no cumprimento da função de combate ao trabalho escravo.”


Frei Gilvander Moreira
Ele é articulista deste jornal O guardião da Montanha. E escreve às terças-feiras
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.                                                

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