Jesus da gente como jovem de periferia crucificado pela violência institucionalizada de uma sociedade
capitalista, máquina de moer vidas. Foto: Marcelo Barros
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Por frei Gilvander Moreira – Ele escreve às terças-feiras
“A
Estação Primeira de Mangueira, na noite de 23 para 24 de fevereiro
de 2020, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro,
RJ, fez um desfile histórico e deu uma Aula Magna de Teologia da
Libertação por meio do samba-enredo, pelas fantasias, pela arte,
ritmo, coreografias etc. Com um samba-enredo inspirado na afirmação
evangélica “A
verdade vos fará livres”
(João 8,32), o carnavalesco Leandro Vieira mostrou as várias faces
de Jesus de Nazaré no meio do povo empobrecido e injustiçado nos
dias atuais que nos fazem pensar: Jesus com rosto de mulher, de
índio, de jovem da periferia, de negro, de LGBTQIs, ... Estas
várias faces de Jesus estão em estreita sintonia com o Evangelho de
Jesus Cristo.
No Evangelho de Mateus, por exemplo, em Mt 25,31-46 se
narra uma cena de “juízo final”, que em última instância
acontece por autojulgamento. “Todos
os povos estão reunidos diante de Jesus”
(Mt 25,32). Ninguém é excluído a priori. Como Deus é amor, todos
são bem-vindos/as, desde que tenham posto em prática relações
sociais/humanas de fraternidade, ética, justiça e solidariedade com
“quem
estava com fome, com sede, nu, exilado/estranho, doente e preso”
(Mt 25,35-36). A quem estranha a relação de Jesus com os
enfraquecidos, Jesus adverte: “Todas
as vezes que vocês se fizeram solidários ao menor dos meus irmãos
foi a mim que fizeram”
(Mt 25,40). Além de que “todos os seres humanos são imagem e
semelhança de Deus criador” (Gênesis 1,26-27) e “o
corpo de cada pessoa é templo do Espírito Santo”
(I Coríntios 6,19), é sagrado e como tal deve ser respeitado,
cuidado e amado. Portanto, quando uma pessoa negra, um índio, uma
mulher, um jovem de periferia, um LGBTQIs, um irmão em situação de
rua, desempregado, sem-terra, sem-moradia, ... está sendo
discriminado/a, violentado/a, torturado/a e morto é Jesus Cristo que
está novamente sendo “crucificado” nos dias atuais.
Com
ousadia profética, o samba-enredo da Mangueira afirma um ‘Jesus da
gente’ com espiritualidade libertadora e aponta verdades que podem
nos inspirar rumo à emancipação humana. Destaco aqui alguns raios
de luz do samba-enredo: “Só ame!” Não seja intolerante,
homofóbico e nem disseminador de ódio. “Teu samba é uma
reza”. O divino está no humano, o sagrado no profano. Em
estilos religiosos fundamentalistas e moralistas estão mais
idolatria do que culto verdadeiro a Deus. “Enxugo o suor de quem
sobe e desce ladeira”. Esta afirmação está em profunda
consonância com a Opção pelos Pobres
que “deve atravessar todas as nossas estruturas e prioridades
pastorais”, conforme os Documentos das Conferências Episcopais da
América Latina (Documento de Aparecida, n. 396, cf. Medellín, n.
14,4-11; Documento de Puebla, n. 1134-1165; Santo Domingo, n.
178-181). Sendo filho de carpinteiro e de mulher simples
do meio do povo, Jesus abraça as alegrias e as dores do povo como
suas alegrias e suas dores. Isto se espera de quem se diz seguidor/a
do Nazareno. Jesus vivo ressuscitado está presente no meio da classe
trabalhadora consolando as pessoas aflitas e afligindo as pessoas
opressoras.
“Me
encontro no amor que não encontra fronteira”.
O nosso amor precisa ultrapassar o jeito de amar de moralistas e
fundamentalistas. Devemos amar a todos, mas não do mesmo jeito.
Devemos amar as pessoas injustiçadas nos colocando ao lado delas
para com elas e a partir delas caminhar, solidariamente, lutando
pelos seus direitos. E devemos amar os inimigos/opressores do povo
fazendo o possível e o impossível para retirar das mãos deles as
armas com as quais promovem violência e injustiça. “Procura
por mim nas fileiras contra a opressão”.
Jesus Cristo está muito mais no meio do povo sofrido e injustiçado
do que nos templos e cultos religiosos desligados da vida real do
povo, onde mais se furta dinheiro do povo com discursos de autoajuda
e teologia da prosperidade.
“... a
esperança brilha mais na escuridão”.
Realmente, no meio de uma noite escura é possível luz brilhar mais
do que o sol do meio dia. Quanto mais os violentos insistem em
violentar os enfraquecidos mais se alimenta o movimento popular de
luta para construir paz como fruto de justiça social, agrária e
socioambiental. “Não
tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão”.
Eis mais uma verdade que liberta. O sistema capitalista é uma
máquina de moer vidas, porque pisoteia cotidianamente na partilha
como estilo de vida e insufla a acumulação e a competição como se
fossem valores, mas na realidade são vírus que desumanizam quem se
deixa desorientar pelo individualismo e pela idolatria do mercado.
Jesus de Nazaré propôs: “Amai-vos
uns aos outros como eu vos amo”
(João 13,34) e jamais ‘armai-vos uns aos outros’. Quem acredita
em arma não acredita no poder infinito do amor. “Só o amor
constrói”, já dizia Francisco de Assis há 800 anos.
Enquanto
os povos escravizados enfrentavam o deserto, após a libertação do
imperialismo dos faraós no Egito, e enquanto lidavam com os desertos
interiores, a Bíblia narra que os profetas Eldad e Medad estavam
profetizando no Acampamento, fora da tenda (Números 11,27), na
caminhada pelo deserto rumo à conquista da "terra que mana
leite e mel". Apareceu gente querendo proibir a profecia de
Eldad e Medad, porque “eles eram de fora”. Às pessoas que
ficaram iradas com a profecia de Eldad e Medad, fora da instituição,
Moisés bradou: "Oxalá todo o povo fosse profeta e recebesse
o Espírito de Javé, Deus solidário e libertador" (Números
11,29).
Evelyn Bastos representou uma versão feminina de Cristo e desfilou vestida. Foto: Marcos Serra Lima/G1 |
Evelyn
Bastos, a sambista rainha de bateria da Estação Primeira de
Mangueira, que representou Jesus como Mulher Negra, com as feridas
que uma sociedade capitalista com desigualdade social e violência
institucionalizada impõe também às mulheres, - o feminicídio, por
exemplo -, disse após se apresentar na Sapucaí: "Renunciei
ao que mais amo, que é sambar, para apresentar Jesus Mulher que "só
ama". Por respeito às pessoas que pensam diferente também me
apresentei sem expor o corpo". Evelyn Bastos perguntou: “Se
tivessem nos ensinado que Jesus também poderia ser uma mulher, o
Brasil estaria no topo do feminicídio?” E exortou
profeticamente: “Que todos os olhos possam acolher todas as
imagens de Jesus, porque ele está no meio de nós”. Que beleza
profética, amorosa e respeitosa! Eu vi Jesus na Mangueira!
A
quem se escandaliza com o ‘Jesus da gente’ da Mangueira pergunto:
por que se tornou normal a imagem de Jesus Cristo como um europeu
branco, de olhos azuis?
Se
você não assistiu, sugiro assistir sem preconceitos, de coração
acolhedor, ao vídeo do desfile da Estação Primeira de Mangueira e
você se humanizará com a mensagem libertadora que a Estação
Primeira de Mangueira trouxe para o Carnaval em 2020.
Com
a Direção do CEBI Nacional, afirmamos: “A Mangueira com ousadia
provoca e desestabiliza profeticamente muitos que desde os altares e
púlpitos se calam diante das ações de uma política podre e
destruidora; outros tomam o púlpito e os altares para defender o que
não é o Evangelho de Jesus de Nazaré”. ‘Só ame!”,
anuncia a Mangueira. Santo Agostinho dizia: “Ame e seja livre para
fazer o que quiser”.”
Nosso articulista às terças-feiras: Gilvander Luís Moreira
– Frei
e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI,
SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG
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