Fonte: frei Gilvander |
Por Gilvander Moreira - Articulista às terças-feiras
"No
Brasil, é impossível compreender a luta pela terra e por direitos
sem a compreensão do fenômeno religioso manifestado pelos sujeitos
da luta pela terra e por direitos. O fenômeno religioso aparece
explicitamente nos discursos dos sujeitos que fizeram e continuam
protagonizando a luta pela terra e por direitos. Podemos citar alguns
exemplos como amostra. Na marcha do MST
de
Goiânia a Brasília, dia 7 de maio de 2005, alguns camponeses
devotamente liam um salmo na Bíblia. Perguntamos: “A
Bíblia precisa estar na marcha?”
Obtivemos
como resposta: “Sem
dúvida, pois Deus caminha conosco. Aqui descobrimos que somos Povo
de Deus em busca de terra, pão e liberdade. Deus está conosco.
Infeliz quem tenta impedir nosso projeto que é libertar a mãe
terra!”,
respondeu-nos um camponês idoso na Marcha.
Agente
de pastoral aguerrida na luta pela terra, a irmã Geraldinha, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), ao ser entrevistada, volta e meia,
revela a fé no Deus da vida que a move na luta em defesa dos
empobrecidos: “Com
base na Bíblia,
levamos
o povo a descobrir que
a
terra pertence a Deus e, portanto, a todos”
(Irmã
Geraldinha, dia 09/6/2016). Ozorino Pires, 71 anos, camponês
atualmente assentado em Salto da Divisa, MG, no Assentamento Dom
Luciano Mendes, dizia evocando que a motivação para estar na luta
pela terra está na fé em Deus: “A
Escritura Sagrada diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem
porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez
a terra não passou escritura para ninguém, não. Somos filhos da
terra e filhos de Deus”.
Assim, por uma perspectiva de fé que vem da experiência dos povos
da Bíblia que lutavam por terra, justiça e paz, se questiona a
propriedade privada capitalista como se fosse algo natural.
Na
luta pela terra e por direitos, é imprescindível a fé das
camponesas, dos camponeses e da classe trabalhadora na cidade. O
camponês Olivério de Carvalho, do Assentamento Primeiro do Sul, em
Campo do Meio, no sul de Minas Gerais, relata: “No
início da nossa luta aqui, a gente ia para a cidade fazer
panfletagem. Algumas pessoas pegavam um porrete e corriam atrás da
gente dizendo que a gente estava roubando terra. Muita gente não
entende. Deus criou a terra para todos, não colocou cerca e nem
porteira. A luta pela terra não começou hoje. Começou com o povo
da Bíblia, bem antes de Jesus Cristo, lá no Egito, com Moisés,
Miriam e as parteiras, que, com muita luta, reuniram o povo e
atravessou o Mar Vermelho. Quando a polícia do faraó quis impedir a
libertação do povo, o mar fechou e não sobrou nenhum policial. No
deserto, durante o dia, uma nuvem protegia o povo do calor e à noite
uma coluna de fogo aquecia o povo e guiava todos. Depois que Moisés
morreu, Josué passou a guiar o povo no deserto ruma à terra
prometida. Na Bíblia está escrito que Deus enviou o povo para uma
terra onde manava leite e mel. Logo, essa terra nossa aqui nesse
latifúndio da ex-usina Ariadnópolis é a terra prometida. Não é
fácil a luta pela terra, mas Deus está conosco. Quem poderá nos
vencer, se Deus está do nosso lado?”
Acampamento Dom Luciano, do MST, em Salto da Divisa, MG, festeja conquista da Fazenda Monte Cristo
Acampamento Dom Luciano, do MST, em Salto da Divisa, MG, festeja conquista da Fazenda Monte Cristo
Obed
Vieira de Jesus, camponesa assentada no Assentamento Nova Conquista
II no latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, afirmou: “Com
fé em Deus e no MST, que somos nós povo do campo, nós não vamos
mais ser despejados”.
Getúlio Lopes do Nascimento, 61 anos, Sem Terra, atualmente
assentado no Assentamento Dom Luciano, recorda: “Há
muito que procuro um lugarzinho para a gente ficar sossegado, sem ser
empurrado ou pisado, até Deus mandar chamar. A melhor alternativa é
o caminho que nós estamos seguindo, primeiro, com Deus; depois, com
o MST”.
Feliz pela conquista do primeiro assentamento no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, no momento da oficialização do Assentamento Dom Luciano Mendes, Irmã Geraldinha exclama: “A ‘reforma agrária’ chegando a Salto da Divisa está chegando a libertação dos filhos de Deus, dos pobres dessa terra. Graças a Deus, estou viva aqui, pois foram tantas ameaças de morte”.
Acampamento Dom Luciano, do MST, tomando posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa.
Feliz pela conquista do primeiro assentamento no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, no momento da oficialização do Assentamento Dom Luciano Mendes, Irmã Geraldinha exclama: “A ‘reforma agrária’ chegando a Salto da Divisa está chegando a libertação dos filhos de Deus, dos pobres dessa terra. Graças a Deus, estou viva aqui, pois foram tantas ameaças de morte”.
Acampamento Dom Luciano, do MST, tomando posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa.
Não
apenas na luta pela terra aparece a dimensão religiosa das pessoas
como forte fator de mobilização e de envolvimento com a luta, mas
na luta por todos os direitos fundamentais, no meio do povo, é
marcante a dimensão de fé das pessoas. Ignorar a dimensão de fé
das pessoas nas lutas sociais é uma burrice sem tamanho. No Brasil,
a dimensão religiosa das pessoas tem sido uma questão política
muito séria. Todas as pessoas envolvidas em lutas por direitos
sociais e ambientais precisam estudar, compreender e lidar de uma
forma respeitosa com a dimensão de fé das pessoas. O diálogo é o
caminho e jamais ignorar ou menosprezar a dimensão de fé das
pessoas. Nesse sentido, sugiro a leitura do livro “Teologias da
Libertação para nossos dias”, de Marcelo Barros, Ed. Vozes, 2019.
Necessário se faz estudar sociologia da religião a partir da perspectiva marxista para lançarmos luzes teóricas sobre o peso e a influência da religião na consciência e na ação prática da classe trabalhadora e do campesinato, a opressão nas diversas religiões e especificamente na imensa variedade de igrejas cristãs, o enorme poder das igrejas eletrônicas (neo)pentecostais na vida das/os trabalhadoras/es na cidade e dos camponeses no campo, a corrosão que movimentos religiosos espiritualizantes, moralistas e intimistas das igrejas promovem diariamente nas relações sociais.
Necessário se faz estudar sociologia da religião a partir da perspectiva marxista para lançarmos luzes teóricas sobre o peso e a influência da religião na consciência e na ação prática da classe trabalhadora e do campesinato, a opressão nas diversas religiões e especificamente na imensa variedade de igrejas cristãs, o enorme poder das igrejas eletrônicas (neo)pentecostais na vida das/os trabalhadoras/es na cidade e dos camponeses no campo, a corrosão que movimentos religiosos espiritualizantes, moralistas e intimistas das igrejas promovem diariamente nas relações sociais.
O
que é ou o que deve ser Religião? Segundo a etimologia da palavra,
o termo ‘religião’ vem do latim re-ligare,
re-legere,
re-eligere.
Assim, segundo a Teologia da Libertação, para quem acredita em um
Deus e, por isso, segue uma religião, religião diz respeito a
religar a pessoa humana com Deus, com o outro (o próximo,
alteridade), com o nosso eu profundo e com todos os seres vivos da
biodiversidade. Nesse sentido, para quem é adepto de alguma
religião, a religião integra a pessoa na grande comunidade da vida,
guia até o mais profundo de si mesmo, seus medos e sonhos, suas
forças e fraquezas. Entretanto, a história da humanidade está
recheada de religiões enquanto instituições cúmplices dos poderes
opressivos. Uma religião institucional tem sacerdotes, funcionários,
dogmas, doutrina e hierarquia.
Com a institucionalização das religiões, o espírito original ético e promotor de sociabilidade com respeito à alteridade acaba sendo abafado. O que deveria ser instrumento de emancipação humana torna-se instrumento de opressão, de legitimação da ordem estabelecida opressora/injusta.
Com a institucionalização das religiões, o espírito original ético e promotor de sociabilidade com respeito à alteridade acaba sendo abafado. O que deveria ser instrumento de emancipação humana torna-se instrumento de opressão, de legitimação da ordem estabelecida opressora/injusta.
Enfim,
a dimensão religiosa das pessoas, dependendo da forma como é
vivenciada, pode mobilizar para lutas libertárias ou pode estilhaçar
lutas necessárias."
Referência.
MOREIRA,
Gilvander Luís. Mística evangélica do compromisso com os pobres,
p. 85-102. In: RHEMA
Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico
Arquidiocesano Santo Antônio,
v. 8, n. 29, 2002.
Frei Gilvader Luís Moreira além de frei é padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Dir eitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. www.gilvander.org.br
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