sexta-feira, 8 de março de 2024

"Mulher, patriarcado e capitalismo"

 Por Ana Paula Ferreira            

"Desde crianças somos marcados por violências veladas que definem o que podemos ou não fazer, ser, falar de acordo com nossa chegada ao mundo enquanto meninos ou meninas. Se por um lado, o garoto foi incentivado o tempo todo a ocupar o espaço público, seja nas brigas por causa de pipa ou num conflito de futebol de rua, a mulher foi a condicionada ao espaço doméstico: cuidar de bonecas, preparar comidinha. Não é sem razão que muitas profissões aceitáveis para o público feminino são um prolongamento do cuidar e por isso é tão comum a mulher enfermeira ou professora, mas não é visto como natural se são engenheiras ou deputadas.

Aceita-se a impulsividade, a energia, a força masculina em se posicionar, e, por outro lado, criamos as meninas inseguras, doceis, amarradas no ideário da felicidade conjugal do “príncipe encantado”. Assim, se tornam vítimas fáceis de relacionamentos abusivos, desencorajadas em retrucar o patrão e consumidoras até mesmo compulsivas do setor de cosméticos e vestuários. Por fim, elas são, nós somos, segundo sexo (tomando por base o título do livro de Beauvoir) de três palavras no masculino: do marido ou pai, (na figura de esposas ou filhas), do mercado de trabalho (na posição de trabalhadoras e/ou consumidoras) e do Estado (no papel subalterno de cidadãs).

Essa opressão sentida em termos simbólicos ou físicos é o que marca a violência de gênero, o que é chamado por algumas feministas por “patriarcado”, ou seja, uma nítida demarcação de poder do homem na sociedade em relação a mulher, um problema de ordem estrutural, pois está na política, nas relações trabalhistas, na cultura e na nossa subjetividade.

Contudo, embora tenhamos o patriarcado há séculos, ele não é igual em todas as épocas nem em todos os lugares. Cito dois países para evidenciar de como a economia interfere na relação de gênero: Estados Unidos e Cuba. No caso do primeiro, as mulheres não contam com o salário, maternidade, creches públicas são quase inexistentes e a porcentagem de mulheres no Congresso é menos que 30%. Em contrapartida, no país de economia socialista, a presença feminina em cargos políticos na Assembleia é mais de 50%, as creches são públicas, 100% das crianças são atendidas, liberando as mães para o trabalho. Além disso, a licença maternidade é de 4 meses e até que a criança complete um ano há o benefício social pago para que algum tutor (mãe, pai ou avó) cuide da criança. O estudo técnico de Cláudia Virgínia Brito de Melo mostra alguns desses dados.

Por que a diferença? Porque, de acordo com a linha neoliberal, o Estado deve intervir o mínimo possível, de modo que as empresas e os indivíduos possam operar por si só. A retórica é de democracia, mas a evidência na concretude e nas porcentagens é que a vida digna é apenas para usufruto de algumas. Uma ilustração disso é pensarmos nas inúmeras mulheres invisibilizadas vendendo de porta em porta os produtos de revistas de cosméticos em troca de um percentual ínfimo e sem nenhuma garantia trabalhista, enquanto poucas, na maioria das vezes brancas, são colocadas nas capas, como símbolo do poder, numa lógica de evidenciar o sucesso individual.

No Brasil além do patriarcado e do capitalismo, ambas estruturas que condicionam a mulher em papel subalterno, temos também outro fator: a questão de nosso subdesenvolvimento econômico, que empurra as mulheres pobres para serviços precarizados, de baixa remuneração e nem sempre com direitos trabalhistas garantidos. Assim, a mulher é duplamente explorada, haja vista que sofre exploração por ser trabalhadora e por ser mulher, lembrando que seu salário é geralmente inferior ao do homem, mesmo realizando as mesmas funções. Somada a essa desigualdade econômica, a violência doméstica no Brasil mata mais que câncer e acidente de trânsito. Quando se destaca não apenas a condição de gênero, mas também a questão étnica, tem-se um dado ainda mais perverso contra a mulher negra, que representa 74% da violência de gênero no Brasil.

É importante percebermos que não diminuímos a violência simplesmente com leis mais enérgicas. É necessário que cidadãs usufruam de direitos políticos, econômicos e sociais. Já é comprovado na Sociologia que quanto mais investimento social, menos violência se tem, e por isso, que um feminismo branco, liberal, que apenas nos fale “Você pode ser o que quiser”, é um feminismo falso, ardiloso, porque deixa apenas a cargo do indivíduo um problema que é social, e assim, nada muda a situação de incontáveis mulheres que estão abaixo da linha da miséria, que são objetificadas pela sociedade como propriedade do marido, do mercado ou do Estado.

Enquanto não conseguimos a superação de um modelo econômico de sociedade no qual o ser humano deixe de explorar o trabalho alheio, enquanto não superamos a abismal desigualdade entre homens e mulheres, é necessário um feminismo visionário transformador, tal como nos fala bell hooks, ou seja, aquele que não se coaduna nem com o capitalismo, nem com o patriarcado, que fortalece as trincheiras na consolidação de políticas públicas e que não abandona as mulheres a própria sorte."

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