Gregório: "Está duro para os humoristas de hoje superar o anedotismo da realidade brasileira" (Ernani d'Almeida/VEJA) |
"Comediante define o presidente Jair Bolsonaro como “bufão” e fala que a esquerda "também é e sabe ser ridícula""
Por Fernanda
Thedim e Bruna Motta
“O
humorista carioca Gregório
Duvivier,
33 anos, é de esquerda, fuma maconha, tuíta sem parar e não foge
de uma polêmica — muito pelo contrário. Dessa postura diante da
vida vem sua coleção de desafetos, na qual figura com destaque o
presidente Jair Bolsonaro, que ele vê como “um ser humano com
problema cognitivo muito sério”. Arrisca até uma explicação:
“Talvez seja culpa do mercúrio em que mexia quando fazia garimpo
ilegal. Mercúrio causa sequelas”. Embora tenha a direita como alvo
preferencial, não poupa de críticas os companheiros da esquerda,
que a seu ver falam “não” demais e propõem muito pouco. Formado
em letras pela PUC-Rio, Duvivier começou no humor aos 17 anos,
em um espetáculo de improviso, e se tornou conhecido no Brasil todo
como integrante do Porta dos Fundos, impagável canal do YouTube com
mais de 16 milhões de inscritos. Fazendo uma pausa nas muitas
atividades, que incluem um programa semanal na HBO e os preparativos
para a estreia em outubro — em um papel dramático com cenas de
nudez — de seu 25º filme, A
Vida Invisível de Eurídice Gusmão (o
candidato do Brasil ao Oscar), Duvivier falou a VEJA sobre humor e
política no Brasil.
O
senhor vem travando batalhas digitais com o presidente Bolsonaro.
Isso tem graça? Graça
zero.
Gostaria que o presidente se ocupasse mais de seu trabalho no lugar de ficar trocando mensagens com humorista. Um dia desses disse isso a ele via Twitter. Bolsonaro tinha se referido aos governadores do Nordeste como paraíbas. Cutuquei: “Prove sua popularidade na rua dando um passeio entre os ‘paraíba’ ”. A resposta dele foi um vídeo, em que é ovacionado na Bahia. Isso não cola. Aproveitei e dei o recado: “Vai trabalhar, presidente”.
Gostaria que o presidente se ocupasse mais de seu trabalho no lugar de ficar trocando mensagens com humorista. Um dia desses disse isso a ele via Twitter. Bolsonaro tinha se referido aos governadores do Nordeste como paraíbas. Cutuquei: “Prove sua popularidade na rua dando um passeio entre os ‘paraíba’ ”. A resposta dele foi um vídeo, em que é ovacionado na Bahia. Isso não cola. Aproveitei e dei o recado: “Vai trabalhar, presidente”.
Bolsonaro
é engraçado? Ele
quer ser. Nada justifica suas falas senão uma tentativa de fazer
piada. Mas é aquela graça à moda antiga. Os saudosistas do humor
do passado estão muito bem servidos com o presidente. Bolsonaro é
bom de meme, de viralizar declarações e de tirar a atenção do que
interessa de verdade.
Os
bolsominions costumam deixar comentários em suas redes sociais? Juro
que não leio. Não tomar contato com a parte mais estridente do
eleitorado de Bolsonaro foi a maneira que encontrei de permanecer
são.
O
senhor percebe em algum dos filhos do clã presidencial pendor para o
humor? Embora
goste da sintaxe doentia do Carluxo, o melhor talvez seja Eduardo
falando inglês. Olha, está duro para os humoristas de hoje superar
o anedotismo da realidade brasileira.
“O
presidente cancela reunião diplomática e vai cortar o cabelo e faz
piada de pinto pequeno com fã japonês. Tem seu público, uma turma
que acha graça de escatologia e fratura exposta”
Pode
definir esse humor de antigamente reavivado por Bolsonaro? Há
uns quinze anos, quando comecei, os alvos dos humoristas eram os
mesmos da polícia. Ria-se de pobres, negros, nordestinos,
homossexuais. Para o bem geral da nação, isso mudou. Não é que
não se podem mais fazer piadas desse tipo; elas só não têm mais a
graça que tinham. Essa foi uma porta arrombada pelas minorias.
O
politicamente correto reprime o humor em algum grau? Não.
Ao contrário: ele obriga o humorista a encontrar caminhos mais
inteligentes para fazer rir. Nosso trabalho ficou certamente mais
duro na era do politicamente correto, mas ninguém escolhe fazer
humor porque é fácil.
Sendo
declaradamente de esquerda, o senhor às vezes cai na armadilha de
enviesar ideologicamente suas piadas? Navego
em todos os matizes ideológicos. Apesar de me identificar com a
ideologia da esquerda, isso não me impede de rir dela. Em um vídeo
do Greg
News,
dizemos que a direita não sabe fazer hambúrguer e que a esquerda
não sabe fazer autocrítica. Claro que eu acho a nossa direita
infinitamente mais cômica, mas isso não me impede de rir da
esquerda. Ela também é e sabe ser ridícula.
Por
que a direita é mais cômica? O
presidente cancela reunião diplomática para fazer live cortando
cabelo. Acena com um emprego de embaixador dos Estados Unidos para o
Eduardo Bolsonaro e, quando questionado, diz: “É claro que vou
guardar o filé-mignon para os meus filhos”. Faz piada de
pinto pequeno com um fã japonês. Ele tenta ser um clown,
só que é um bufão. E tem o seu público, uma turma que acha graça
de escatologia e fratura exposta.
Por
que o senhor diz que a esquerda é ridícula? Ela
é ridícula ao tentar não ser. Cada vez que vai desmentir uma fake
news,
piora ainda mais a situação. Explicar que não existe a tal
mamadeira de piroca que seria distribuída nas escolas na hipótese
de um governo petista, notícia falsa que circulou nas eleições
presidenciais, é ainda mais ridículo do que inventar que existe
algo assim no planeta. Essa é a armadilha do humor bufão: ele
arrasta todo mundo para o seu nível. E o outro lado frequentemente
se dá mal.
Qual
é a autocrítica que falta à esquerda? A
esquerda não propõe nada. Só lança frases de efeito como “Ele
não”, “Fora Temer”, “Fora Bolsonaro”, “Não vai ter
Copa”, “Não vai ter golpe”. Tudo tem um não. O que eles
querem? A esquerda não tem uma proposta que não seja uma negação
de outra proposta. Um exemplo: disseram não à reforma da
Previdência, mas não apresentaram nenhuma solução. Perderam a
chance de apontar um caminho. O jogo hoje se inverteu: a direita está
propositiva e a esquerda, só combativa. Agora, vamos combinar que a
parcela da população realmente apegada a essa ideia de esquerda e
direita é muito pequena.
Como
assim? Não
acho que a maioria das pessoas que votaram em Bolsonaro seja de
direita, assim como a grande parcela das que votaram no Lula não era
de esquerda. Muita gente não leva em conta a ideologia na hora de
votar. Presta mais atenção em informações instantâneas, nem
sempre verdadeiras, e na repulsa a um ou outro candidato. Na minha
opinião, classificar todo eleitor de Bolsonaro como de direita é um
erro estratégico da esquerda.
Em
seu canal de vídeos no YouTube, o Porta dos Fundos, há sátiras
pesadas a religiões. Isso pode? Para
mim, o critério é o seguinte: se a pessoa, se a instituição que
está na mira da minha piada consegue rebater na mesma moeda, sigo em
frente. No caso das religiões que a gente satiriza — católica,
evangélica —, elas têm força política e financeira. Sabe por
que eu zombo do Bolsonaro? Porque ele tem um canal de comunicação
potente para responder. Antes de atirar, sempre me pergunto se estou
chutando cachorro morto ou passando a mão na bunda do guarda.
Já
se arrependeu de alguma piada? De
várias. Uma vez, vim com uma que fazia referência à mulher do
Pedro Paulo (deputado
federal, DEM-RJ),
que tinha dado queixa contra ele por agressão. Eu disse: “O Rio de
Janeiro apanhou mais que a mulher do Pedro Paulo”. Acho que foi uma
piada machista e me retratei. Só que quando você volta atrás acaba
sendo odiado pelos dois lados.
O
senhor conta com um vasto rol de desafetos na política, incluindo aí
o deputado Marco Feliciano, o pastor Silas Malafaia e o ministro
Sergio Moro. Tem orgulho da lista? O
papel do humorista é constranger, e isso incomoda mesmo. Se eu não
incomodasse, estaria fazendo algo errado. Quem me ensinou isso foi o
Millôr Fernandes (1923-2012).
Nunca estive alinhado ao poder. Atuo sempre na oposição. Se esses
caras estivessem me compartilhando nas redes, aí sim estranharia.
“Foi
só depois do sucesso no YouTube que passaram a nos procurar para
atuar na TV. Aí não fazia mais sentido. A aposta do futuro é a
internet, onde temos toda a liberdade”
O
humorista Danilo Gentili foi condenado à prisão por injúria contra
a deputada Maria do Rosário. O senhor tem medo de ser
processado? Apesar
de a piada do Danilo ter sido de extremo mau gosto (xingou
a deputada de “falsa”, “nojenta” e passou o processo nas
partes íntimas),
eu me manifestei a favor dele. Calúnia e difamação são crime, mas
ofensa não. O problema no Brasil é que as pessoas não conseguem
entender essa diferença elementar. Por isso vou defender a piada e a
liberdade de expressão até a morte. Apesar de não ser amigo do
Gentili, fico muito incomodado com a forma como a esquerda o coloca
no papel de inimigo.
Gosta
do humor que ele faz? Ele
tem seu público. Mas, para o meu gosto, já passou o tempo de piada
do tipo do tio que pergunta: “É pavê ou pra comer?”.
O
Porta dos Fundos abarca humoristas de diferentes pendores
ideológicos. Sai muita briga? É
verdade que tem gente ali de variados espectros políticos, só que
todo mundo está dentro do campo democrático. Não tem
terraplanista, nem criacionista, nem bolsonarista. Discordamos o
tempo inteiro, mas nunca no essencial. É isso que torna as
discussões possíveis.
A
internet foi decisiva para o humor no Brasil? Sem
dúvida. Antes dela, o mundo do humor era regido pela audiência e
pela visão dos executivos da televisão. Com a internet, a decisão
passou a ser do público. Isso abriu espaço para estilos diferentes,
deu lugar à diversidade, e o humor avançou. Apresentamos o Porta
dos Fundos a uma meia dúzia de canais de TV, e ninguém viu graça.
Foi só depois do sucesso no YouTube que passaram a nos procurar para
atuar na televisão. Mas aí não fazia mais sentido. A aposta do
futuro é a internet, onde temos toda a liberdade.
Os
humoristas ainda são vistos como artistas de segunda classe na TV
brasileira? São,
e isso tem a ver com uma percepção geral de que o humor é
supérfluo. Só que, apesar do preconceito, nossos melhores atores
são comediantes. A Fernanda Montenegro, por exemplo, faz drama de
forma magistral, mas é comediante de formação e a maior referência
para todos nós. A melhor comédia, aliás, é aquela que flerta com
o drama, como Woody Allen faz tão bem.
Como
era o humor que predominava na TV na era pré-internet? Anedótico,
caricatural, carregado nas tintas. Qualquer coisa que fugisse disso
era tratada como “humor inglês”, difícil. Subestimava-se o
espectador. Ouvimos diversas vezes: “O brasileiro não vai
conseguir entender isso”. Havia quem conseguisse ser autoral dentro
dessa máquina — Os
Normais, Os
Aspones, TV
Pirata, Vida
ao Vivo são
exemplos. Mas a única porta de entrada que praticamente se abria aos
novatos era a do bordão, em geral reciclado do rádio, que por sua
vez tinha sido reciclado do teatro de revista. O gênero do bordão
segue firme e forte, e tem o seu valor, mas hoje jovens humoristas
podem mostrar que dá para rir de outro jeito. Não é bom?"
Fonte:
veja.com
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