CNBB / Vasili Ivanovich Surikov (Domínio Público) - Campanha da Fraternidade 2020: Santa Dulce e o Bom Samaritano |
Por frei Gilvander Moreira - Escreve às terças-feiras
“O
tema da Campanha da Fraternidade 2020 – Fraternidade e
Vida, Dom e Compromisso – e o Lema “Viu, sentiu
compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34) nos convidam a pensar e
a agir tendo o “bom” samaritano como exemplo, conforme o
episódio-parábola do “Bom” Samaritano (Lc 10,25-37),
que apresenta um contexto histórico com muitas semelhanças com
o contexto atual e demonstra como o samaritano conseguiu manter o
coração aberto e mãos solidárias a partir de quem estava, segundo
Teresinha de Jesus, “metade vivo, metade morto”.
O
início da vida pública de Jesus Cristo foi marcado por uma grande e
crescente receptividade do seu projeto (Ensinamento e Práxis) pelo
povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos. “As
multidões acorriam para Jesus”
(Lc 6,17-19), mas pouco a pouco Jesus foi aprofundando sua postura e
radicalizando sua Opção pelos Pobres, marginalizados e excluídos
da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com “gregos e
troianos” - era de “paz e amor” - durou pouco. Começaram a
surgir conflitos com poderosos (Lc 13,31), pois sua prática
incomodava os interesses dos que viviam explorando e escravizando o
povo. Jesus descobriu que precisava formar melhor seus discípulos e
discípulas, pois viu que a adesão popular inicial era ‘fogo de
palha’ e ‘oba oba’. Com o avanço da missão pública de Jesus,
os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião
foram aumentando gradativamente. Em seus últimos dias, os
embates[2] de
Jesus com as autoridades judaicas e grupos religioso-políticos
renomados se intensificaram (Cf. PALLARES, 1994, p. 117).
Quem
eram os samaritanos para os judeus e vice-versa? Por razões
históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio.
Alguns motivos aparecem na Bíblia ao falar da infidelidade
religiosa. Por exemplo, samaritanos fazem resistência à
reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do exílio
babilônico (Cf. 2Rs 17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclesiástico
50,25-26, os samaritanos são considerados “um povo estúpido”.
Talvez Eclo 50,25-26 tenha influenciado o Evangelho de João (Jo
4,9), onde diz que os samaritanos não se davam bem com os judeus e
Jo 8,48, onde os judeus acusam Jesus de ser samaritano e, portanto,
endemoniado. Uma interpretação rabínica de Êxodo 21,14 diz
expressamente que os samaritanos não são “próximos”. “Do
lado judeu, a hostilidade era tão grande que nas sinagogas os
samaritanos eram frequentemente malditos; os judeus rezavam a Deus
para não dar a eles nenhuma parte na vida eterna, recusavam um
testemunho feito por um samaritano, não aceitavam nenhum serviço
deles” (FEUILLET, 1980, p. 345).
“As
relações entre os judeus e os mestiços samaritanos, que estiveram
submetidas às mais diversas oscilações, tinham experimentado nos
tempos de Jesus especial agravamento, depois que os samaritanos,
entre os anos 6 e 9 da Era Cristã, em Jerusalém, durante uma festa
da Páscoa, por volta da meia noite, tornaram a praça do Templo
impura, esparramando aí ossadas humanas; reinava de ambas as partes
ódio irreconciliável. Vê se então claramente que Jesus e o
Evangelho de Lucas escolhem exemplos extremos”
(JEREMIAS, 1976, p. 203). Segundo o historiador do primeiro século,
Flávio Josefo, “os
samaritanos armaram emboscadas para peregrinos que vinham às festas
judaicas e o procurador Cumanus, subornado pelos samaritanos, não
interveio. Assim judeus atacaram vilas samaritanas e massacraram seus
habitantes”
(GIUSEPPE, 1904, XX. 5,4).
Muitos
acontecimentos contribuíram para piorar as relações entre
samaritanos e judeus, tais como, a construção de um templo
samaritano sobre o Monte Garizin no 4º século antes da Era Cristã,
e que foi destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano em
129 antes da Era Cristã. O Monte Garizin tem quase 3 mil metros de
altitude e é muito mais imponente do que o Monte Sion, onde foi
construído o templo de Jerusalém. A própria questão geográfica
pode ter gerado ciúmes e críticas entre judeus e samaritanos.
Também azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização
do Pentateuco Samaritano na segunda metade do 2º século antes da
Era Cristã. O texto sagrado para os samaritanos se reduz ao
Pentateuco (Torá), os cinco primeiros livros da Bíblia, com algumas
diferenças do Pentateuco judeu-cristão. Os samaritanos recusam os
demais livros da Bíblia como textos inspirados.
Esse
"ódio irreconciliável" entre judeus e samaritanos foi
cultivado por quase mil anos de história. É possível que tenha se
iniciado após a morte do rei Davi, com a separação dos Reinos do
Norte e do Sul, em 931 antes da Era Cristã, quando Roboão se tornou
rei em Judá, com “duas” tribos, no sul, e Jeroboão se impôs
como rei em Israel, nas “dez” tribos do norte. Esta separação
foi forçada e violenta e certamente deixou muitas feridas (Cf. 1Rs
11,26-12,33). Em 722 antes da Era Cristã, o povo do Reino do Norte
foi exilado para a Assíria. É provável que os judeus "sulistas"
tenham cantado vitória dizendo: foram exilados, porque eram infiéis
à Aliança e idólatras. A Assíria "repovoou" o norte da
Palestina com pessoas das mais diversas etnias. No coração dos
samaritanos nortistas pode ter ficado ressentimento. A vez dos judeus
"sulistas" chegou entre 597 e 587 antes da Era Cristã,
quando, após vários exílios, foram exilados para a Babilônia. Os
judeus do sul sentiram na pele aquilo que já tinha se passado com os
"irmãos" do norte. Depois vieram as diversas tentativas de
retorno para a Palestina, terra da promessa de Javé aos povos
escravizados. A volta do exílio e o processo de reconstrução foram
muito complicados, porque havia resistência dos judeus e samaritanos
quanto à fixação novamente na terra. É a partir desta história
que se entendem os diversos atritos e agressões que se sucederam
entre judeus e samaritanos.
Nos
tempos do rei Herodes houve um grande crescimento econômico, à
custa de uma tremenda injustiça social. Muitas terras de judeus
foram expropriadas no norte da Palestina, o que gerou uma massa de
desempregados urbanos no sul, com consequentes distúrbios sociais
inseridos em um contexto propício para a disseminação de
insegurança social.
O
Samaritano apontado pela Campanha da Fraternidade de 2020 como
modelo/exemplo a ser seguido era: um personagem anônimo;
identificado pelo seu país de origem; estrangeiro; impuro e herege,
segundo os judeus. “Está em viagem”, no mesmo movimento que o
Sacerdote e o Levita; não se sabe se ele ia ou vinha de Jerusalém e
este detalhe é importante: tanto o assaltado, quanto o sacerdote e o
levita viajavam no mesmo sentido, de Jerusalém para Jericó, mas é
possível que o samaritano estivesse viajando na direção contrária.
Isto pode significar que o samaritano tinha suas responsabilidades
pessoais; estava "em viagem" (de Jerusalém a Jericó?)
trabalhando. Enquanto isso, o sacerdote e o levita estavam voltando
de seu turno de trabalho no templo, em Jerusalém, e esta
circunstância lhes daria maior disponibilidade de tempo.
Oxalá
a Campanha da Fraternidade de 2020, na sua 56ª edição, nos ajude a
perceber que há muitos padres, pastores e leigos assumindo, na
condução de igrejas, postura de Sacerdote e Levita: insensíveis
aos clamores do povo injustiçado do nosso querido Brasil. Muitas
vezes, com espiritualismos, puritanismos, vida cômoda e amputando a
dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo, esses falsos pastores
ficam só na “toca” dos templos religiosos e se fazem de cegos
diante dos clamores dos crucificados dos nossos dramáticos dias.
Entretanto, existem, graças a Deus, muitas pessoas que são
consideradas ‘impuras’, ‘hereges’, ‘de fora’ dos templos,
‘comunistas’ ... que, na prática, estão sendo solidárias assim
como foi o “bom” samaritano. Ah! O samaritano não fez
solidariedade ingênua, assistencialista que gera dependência. O
samaritano foi também profeta, pois exercitou um tipo de
solidariedade que deixou brasas sobre a cabeça do sacerdote, do
levita, do escriba (doutor da lei = teólogo) e, provavelmente dos
podres poderes políticos, econômicos e religiosos da época.”
Referências.
FEUILLET,
A. “Le bom Samaritain (Luc 10,25-37). Sa signification
christologique et l’universalisme de Jésus,” EspVie 90
(1980), p. 345.
GIUSEPPE,
F. Antiquités Judaiques. Paris, 1904, XX. 5,4.
JEREMIAS,
J. As Parábolas de Jesus. São
Paulo: Paulinas, 1976.
PALLARES,
J. C. Dios es Puro Corazón, la
misericordia de Dios en San Lucas. Messico,
1994.
Frei Gilvander Moreira |
Frei Gilvander Luís Moreira é articulista do OGM e escreve sempre às terças-feiras
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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