Diretas Já em 1984, na Praça da Sé, em SP |
Diretas já em 1984, no Rio de Janeiro |
Diretas já em 1984, em Belo Horizonte |
Vinícius
Mendes (De São
Paulo para a BBC Brasil)
"Em
10 de abril de 1984, mais de um milhão de pessoas realizaram, no
centro do Rio de Janeiro, o maior comício da campanha pelas eleições
diretas organizada no final do regime militar. Em dos momentos
marcantes, o cantor e compositor Milton Nascimento puxou a multidão
no ritmo da música "Nos bailes da vida"."
"No
último dia 28, Milton, de 74 anos, voltou a entoar os versos da
canção ("Todo artista tem de ir/onde o povo está"),
desta vez na praia de Copacabana e para um público bem menor - os
organizadores disseram ter reunido 50 mil pessoas, e as autoridades
não divulgaram uma estimativa. O objetivo, porém, era o mesmo: a
mobilização por eleições diretas no país.
Um
ato semelhante ocorreu no domingo(4) em São Paulo, poucos dias após
a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovar proposta
que prevê voto popular em caso de vacância da Presidência nos três
primeiros anos de mandato. O texto ainda precisa ser aprovado no
plenário da Casa e da Câmara dos Deputados para entrar em vigor.
Ato por Diretas Já a manifestação no Largo da Batata, em São Paulo, no último domingo, com a participação de Chico César, Maria Gadú, entre outros. Esta manifestação reuniu cerca de 100 mil pessoas. |
Ou
seja: 34 anos depois da primeira campanha, o Brasil revive a pauta do
fim do regime militar (1964-1985), mas em outro cenário político e
histórico. E quais são essas diferenças de contexto?
Ato por eleições diretas e pela saída de Temer em Copacabana; iconografia de movimento original, como o traço do cartunista Henfil, foi recuperada em cartazes, em 2017. |
A
BBC Brasil consultou pesquisadores em história e política nacional
que vivenciaram ou estudaram os dois momentos e identificam ao menos
cinco diferenças importantes entre a reivindicação de hoje e
aquela dos últimos anos de ditadura.
1)
Cenário político
A
primeira diferença é, naturalmente, a situação política do
Brasil, que em 1984 estava em transição de um regime autoritário
para um projeto democrático.
Milton Nascimento e Caetano Veloso em ato por eleições diretas no Rio |
A
mobilização atual, afirmam professores ouvidos pela reportagem, é
um instrumento de grupos da sociedade que veem uma chance de
apaziguar a crise política que o Brasil enfrenta há mais de dois
anos, mas dentro de um regime democrático.
Em São Paulo, o compositor e cantor Chico César, entre outros artistas no Largo da Batata, que reuniu cerca de 100 mil pessoas com objetivo das Diretas Já e do Fora Temer.
Ato
por eleições diretas na praça da Sé, em São Paulo, em janeiro de
1984; comício reuniu 300 mil pessoas e amplificou campanha
"A
campanha dos anos 1980 era contra uma ditadura militar de quase duas
décadas. Não vejo semelhanças com o movimento de agora",
crava o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho.
O
professor de Filosofia do Direito da USP José Reinaldo Lopes tem a
mesma visão. Para ele, o primeiro Diretas-Já estava inserido em um
cenário de "inimigo em comum", enquanto hoje há uma
resposta de momento à situação institucional.
"O
movimento atual é casuístico e conjuntural, porque chega para
resolver uma crise", opina.
O
filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Política da
USP e ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff, manifesta
percepção um pouco distinta. Para ele, o atual momento é mais
semelhante ao fim do regime militar do que aparenta ser.
"Não
temos tanta liberdade de expressão e o movimento do voto foi
questionado (no impeachment de Dilma). Se você falar que estamos
numa democracia não assino embaixo, porque esse governo não tem
legitimidade popular", afirma.
2) Mobilização da sociedade
Para
o historiador José Murilo de Carvalho, enquanto em 1980 havia união
da sociedade em torno da proposta de votação popular para
presidente e da ideia mais ampla de eleições diretas como projeto
político, a campanha atual é uma demanda de um dos setores
envolvidos no embate político.
"A
campanha dos anos 1980 unia todos os que eram contra uma ditadura que
não admitia eleição direta, isto é, unia a grande maioria do povo
brasileiro. A de hoje é, em boa parte, extensão do conflito gerado
pelo impeachment de Dilma Rousseff", avalia.
Ato
em maio em Brasília, em 2017 por eleições diretas, e pela saída do
presidente Michel Temer; mobilização é extensão do conflito que
levou á queda de Dilma, avalia José Murilo de Carvalho
"São
a favor das diretas os que combateram o processo de impeachment, com
a adesão de parte dos que se desapontaram com o governo Michel
Temer. Dificilmente o movimento de hoje conseguirá a mesma
mobilização", sugere.
Professor
de Ciência Política da Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, Aldo Fornazieri vai na mesma linha.
"A
atual reivindicação não está inserida num contexto de contestação
de todo o regime político. Aquela pauta dos anos 1980 foi
mobilizadora porque era uma perspectiva de país. Agora é a
representação de parte da sociedade, a esquerda, que foi derrotada
no impeachment", diz.
Fornazieri
afirma que os atuais movimentos por eleições diretas têm caráter
mais prático e menos estratégico. "Eles querem aglutinar
forças e demarcar um campo de não conciliação com quem tirou a
Dilma do poder. É mais tático."
Conrado
Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, vê como
"totalmente compreensível" a articulação atual por
eleições diretas, mesmo que envolva uma dimensão menor da
sociedade.
"Parece
inadmissível que, num momento de tamanha degeneração das
instituições representativas, em que não há uma autoridade
política relevante sem envolvimento em práticas corruptas, sigamos
a solução constitucional de eleições indiretas", afirma.
3) Visão de futuro
Se
o movimento original das Diretas-Já representava algo a que se
agarrar diante da crise econômica e de um regime em declínio, os
protestos de hoje são reações sem perspectiva clara de futuro,
dizem analistas.
Para
Janine Ribeiro, os atos do passado iam além de uma pauta política:
eram também esperança em um projeto de país.
Vai ser uma festa popular. Um carnaval democrático. (...) O povo quer eleição direta e está demonstrando isso na rua. Eu acho que a coisa vai senador Fernando Henrique Cardoso , comício por Diretas, SP - jan. 1984
"O
final da ditadura tinha uma perspectiva extraordinária:
acreditava-se que a democracia resolveria todos os problemas do país
- a miséria ia diminuir, a economia ia crescer, a Justiça seria
mais equilibrada, a política se estabilizaria. Hoje não há nenhuma
esperança sobre o futuro", avalia.
O
ex-ministro da Educação afirma que, diferentemente do passado, hoje
não há certeza de que uma possível eleição direta para
presidente acabe com a crise e a polarização política. Essa
possibilidade, mesmo se viabilizada de forma constitucional, pode até
agravar o cenário, afirma.
"Não
se tem esperança em nada. O único candidato entre os dois grandes
partidos é o Lula. O PSDB não tem nome. Independentemente disso,
qualquer um que fosse eleito continuaria a divisão social. Em 1983,
o pessoal que defendia a ditadura era um resíduo. Hoje é um racha
enorme", afirma ele.
Para
Lopes, da USP, a campanha dos anos 1980 simbolizava mais do que a
reivindicação por eleição presidencial pelo voto direto.
"Aquele
movimento antecedeu a Assembleia Constituinte, então se tratava de
um pedido de reforma constitucional maior. Na verdade, a mobilização
ampliava o desejo do país em fazer uma reforma constitucional",
diz.
"É a pressão da rua que vai garantir a retomada da democracia brasileira. (...) Esse é o primeiro ato, mas ele vai crescer e se espalhar pelo Brasil. Gente na rua é sempre bom deputado est. Marcelo Freixo, comício Diretas, RJ - maio 2017
"Hoje
a pauta procura atenuar a crise impedindo que outras pessoas sejam
eleitas (pelo voto indireto)", completa.
4) Atuação de líderes políticos
A
campanha do fim do regime militar uniu a sociedade e conseguiu
colocar diversos líderes políticos no mesmo palanque, mas algo
daquela dimensão não se repetiu mais.
No
famoso ato da Praça da Sé em São Paulo, em janeiro de 1984, por
exemplo, Lula, já representando o PT, estava abraçado ao então
senador pelo PMDB Fernando Henrique Cardoso.
Ao
lado deles, o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, do PDT. A
única força política contrária ao pedido - e que seria
determinante para a sua derrota - era o PDS, partido herdeiro da
Arena, a sigla de sustentação à ditadura.
Hoje,
ao contrário, a emenda apresentada pelo deputado federal Miro
Teixeira (Rede-RJ) provocou mais divisão entre as lideranças
políticas - agora mais atuantes dentro do Congresso do que nas ruas.
PT,
PSOL, Rede e boa parte do PSB apoiam a ideia, enquanto a maioria dos
congressistas do PMDB e do PSDB prefere a solução indireta prevista
na Constituição.
"Os
dois grandes movimentos de hoje são para substituir Temer pelo voto
indireto ou para mantê-lo e o outro é para tornar o Lula
inelegível. Os possíveis candidatos à eleição indireta nunca
foram citados como possíveis como postulantes em uma eleição
direta - de Cármen Lúcia (presidente do Supremo Tribunal Federal) a
Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados)", argumenta
Janine.
Os atores principais não estarão no palanque, estarão lá embaixo. O povo estará falando por sua própria voz prefeito Mario Covas, comício por Diretas, SP - jan. 1984
O
professor José Reinaldo Lopes endossa a percepção de divisão
entre os políticos profissionais, argumentando que as diferenças de
opiniões ajudam a refletir sobre o papel que possuem diante da
crise.
"Não
se vai conseguir colocar todos os políticos no mesmo palanque
novamente, o que é um sinal interessante: significa que
conseguiremos ver os diferentes interesses em jogo."
5) Organização das mobilizações
Atores políticos dedicados a mobilizar eleitores em torno das causas também mudaram de lugar. Se antes os protagonistas eram os partidos políticos em formação desde o início da década de 1980, como PMDB, PT e PDT, o ato de domingo em Copacabana, por exemplo, foi organizado por duas frentes de esquerda, Brasil Popular e Povo Sem Medo.
A
frente Brasil Popular inclui entidades como CUT (Central Única dos
Trabalhadores), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra),
CPT (Comissão Pastoral da Terra) e Fora do Eixo. A frente Povo sem
Medo é encabeçada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).
A participação partidária no ato do Rio se restringiu a congressistas do PSOL e da Rede, os mesmos que estão à frente da defesa da proposta de emenda que pede eleições diretas.
A participação partidária no ato do Rio se restringiu a congressistas do PSOL e da Rede, os mesmos que estão à frente da defesa da proposta de emenda que pede eleições diretas.
Para
José Murilo de Carvalho, esse fenômeno tem a ver com a
transformação no modo de mobilização de massas, dos espaços
sociais para os virtuais.
"O
movimento de hoje traz a novidade das redes sociais, inexistente nos
anos 1980 e talvez o meio mais eficaz (de convocação)", diz.
Ele
afirma acreditar que a desconfiança da população em relação aos
partidos políticos tenha reduzido a capacidade de mobilização das
siglas. "No primeiro Diretas-Já havia confiança nos partidos e
nos líderes de oposição. Eles eram representativos. Hoje a
representatividade dos partidos e dos políticos é baixa, o próprio
sistema representativo está sob ataque e há maior fragmentação."
"Não é possível que Michel Temer siga sendo presidente desse país, assim como não é possível que nosso próximo presidente seja eleito por esse Congresso cúmplice do golpe e cheio de deputados investigados” ator Wagner Moura, comício Diretas, RJ - maio 2017
José
Reinaldo Lopes analisa a mudança sob um prisma mais negativo. "São
movimentos desenraizados. A campanha dos anos 1980 reuniu grupos da
sociedade civil que eram atuantes em outras esferas, como saúde,
educação, trabalho, regularização fundiária. O que chamamos de
movimentos sociais hoje não têm base popular e não são ligados à
ação real na sociedade civil", critica.
Fornazieri
defende a legitimidade dos movimentos sociais à frente da atual
demanda por eleições diretas.
"Não
deixa de ser uma parte da sociedade civil", argumenta."
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