Por Gilvander Moreira
- Articulista às terças-feiras
"No
final da penúltima semana de janeiro de 2020, choveu
significativamente em várias regiões de Minas Gerais. Em 24 horas
choveu 171,8 milímetros, chuva mansa, mas constante. Houve uma
enorme mobilização da grande imprensa e de poderes públicos
municipais de muitos municípios no sentido de alertar a população
de que estava chegando uma grande chuva que poderia causar
inundações, deslizamentos e pôr em risco a vida das pessoas. Em
Belo Horizonte, a defesa civil anunciou alerta de risco geológico e
chegou-se a pedir insistentemente para as pessoas ficarem em casa dia
24 de janeiro. Muitas avenidas foram interditadas. Segundo a Defesa
Civil do Governo de Minas Gerais, em Boletim de 26/01, com o título
“Mortes causadas pelas chuvas em MG”, em alguns dias de chuva:
13.887 pessoas foram desalojadas, 3.354 desabrigadas, 12 feridas, 44
foram mortas e 17 estão desaparecidas, o que, segundo o boletim, são
óbitos a serem confirmados.
Diante
dos deslizamentos de terra, das inundações provocadas pelas chuvas,
de quase 14 mil desalojados, de mais de 3 mil desabrigados, de 12
pessoas feridas e mais de 40 pessoas mortas – sem contar 19 pessoas
desaparecidas -, primeiro, expressamos nossa solidariedade e
conclamamos a quem puder se somar ao mutirão de apoio para ajudar as
milhares de famílias atingidas e muitas golpeadas a reconquistar o
mínimo necessário para erguer a cabeça e retomar a vida.
Entretanto, para que a mentira não continue cobrindo as causas mais
profundas da ‘sexta-feira da paixão’ que se abate sobre o povo
cada vez mais com frequência, precisamos dizer em alto e bom som a
verdade, cientes de que a verdade dói, mas liberta. É mentira
a manchete divulgada pela Defesa Civil – “Mortes causadas
pelas chuvas em MG”. É nojento ouvir jornalistas na grande
imprensa dizerem: “a chuva está castigando ...”. “A
chuva está causando estragos ...” Diante dos mortos, das
vítimas e de milhares de desabrigados aparentemente pelas chuvas, é
imoral e covarde ouvir prefeitos dando uma de Pilatos, tentando se
eximir de suas responsabilidades, afirmando que “foi uma
tragédia ambiental natural”, “Cada um deve cuidar da sua
casa”, “Invadiram áreas de riscos. Eles são os
culpados”. Fazer esse tipo de afirmação é apunhalar quem já
foi golpeado, é transformar a vítima em algoz. É injustiça que
clama aos céus.
Não
é a chuva e nem Deus que devem ser condenados. Colocar a culpa
na chuva e em Deus é encobrir o real escamoteamento a verdade, é
criar uma cortina de fumaça que ofusca a realidade beneficiando
somente os adoradores do capitalismo – grandes empresários da
cidade e do campo, políticos profissionais (uma corja) e ingênuos
sustentadores da engrenagem mortífera que continua a trucidar vidas
em progressão geométrica em uma sociedade cada vez mais desigual.
Na
Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. A chuva é benfazeja, cai
sobre justos e injustos, diz o evangelho de Mateus (Mateus 5,45). A
chuva é reflexo da bondade de Deus, que é um mistério de infinito
amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo
(I Reis 8,36). “Mandarei chuva no tempo certo e será uma chuva
abençoada” (Ezequiel 34,26), profetiza Ezequiel
consolando o povo em tempos de imperialismo e de exílio, em tempos
de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que
Deus, solidário e libertador, “por meio da chuva, alimenta os
povos, dando-lhes comida abundante” (Jó 36,31). Até no
dilúvio, a chuva é vista como purificadora (Cf. Gênesis 6 a 9).
Sob o imperialismo dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista
como uma praga que fustiga os opressores, ao mesmo tempo em que é
uma dádiva de Deus que liberta da opressão (Cf. Gênesis 9 e 10).
A
chuva não castiga, não desaloja, não desabriga e nem mata ninguém.
Quem está em casa com boa estrutura, construída sobre terra firme,
pode dormir tranquilo, porque a casa não cairá com as chuvas.
Sempre recordo que 50 anos atrás, quando eu era criança, no
noroeste de Minas Gerais, “chovia invernado uma semana, duas
semanas, às vezes, até um mês sem parar”. Não morria
praticamente ninguém. Nas Décadas de 1970, a maior parte do povo
vivia no campo e podia construir as casas longe das margens dos rios
que ficavam inundadas. Atualmente, só em Belo Horizonte há mais de
200 rios e córregos sepultados com asfalto, após serem envenenados
com esgoto in natura.
A
irmã chuva apenas revela uma injustiça socioeconômica e política
existente. Quem desaloja, desabriga, fere e mata em última instância
é a tremenda injustiça agrária e socioambiental reinante na
sociedade capitalista. Dizer que “a chuva castiga” é mentira, é
reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto
pranto: o sistema capitalista e a classe dominante, que descartam as
pessoas e as condenam a sobreviverem em encostas e áreas de risco.
Soma-se a tudo isto a falta de planejamento urbano e social das
prefeituras, que deveriam investir de forma contundente na elaboração
de Plano Diretor e de zoneamento para as cidades de forma
participativa e comunitária, buscando construir cidades justas
economicamente, solidária socialmente e sustentável ecologicamente.
Sem uma gestão socioambiental, os municípios continuarão
destruindo as matas ciliares de rios e desmatando as suas encostas,
fragilizando o solo, causando deslizamentos e assoreamentos, que
tendem a ser cada vez mais trágicos.
Quem
é atingido quando a chuva chega em um volume maior, salvo exceções,
são as famílias que tiveram seus direitos humanos fundamentais –
direito à terra, à moradia, ao trabalho, à educação, a um
salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade –
desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o
deus capital, o maior ídolo da atualidade.
Segundo
o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU
em seu Comentário 4, todas as pessoas têm o direito a uma moradia
SEGURA E ADEQUADA, abaixo especificada:
a)
Segurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes
não têm um grau de segurança de posse que garanta a proteção
legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças.
b)
Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e
infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não
têm água potável, saneamento básico, energia para cozinhar,
aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de
lixo.
c)
Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou
compromete o exercício de outros direitos humanos dos ocupantes.
d)
Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a
segurança física e estrutural proporcionando um espaço adequado,
bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento,
outras ameaças à saúde.
e)
Acessibilidade: a moradia não é adequada se as necessidades
específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são
levados em conta.
f)
Localização: a moradia não é adequada se for isolada de
oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e
outras instalações sociais ou, se localizados em áreas poluídas
ou perigosas.
g)
Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar
e levar em conta a expressão da identidade cultural (UNITED
NATIONS, 1991).
Portanto,
quem desaloja, desabriga e mata não é a chuva, não é Deus, mas é
a injustiça social reproduzida cotidianamente no Brasil, que gera
uma tremenda desigualdade social e empurra milhões para sobreviver
em áreas de risco geológico. Quem construiu um barraco em área de
risco geológico antes foi empurrado para risco social.
Logo,
gratidão eterna à irmã chuva que gera vida e ao Deus da vida, mas
ira santa e rebeldia diante do sistema capitalista e seus executivos
que de fato desabrigam, golpeiam e matam. É hilariante ouvir um
prefeito ‘lavar as mãos’ sujas de sangue e dizer que “cada um
deve cuidar de sua casa”. Autoridades políticas só podem dizer
isso após construírem moradia digna – SEGURA e ADEQUADA - para 7
milhões de famílias que estão sem moradia no Brasil. Enfim, após
fazerem reforma agrária e reforma urbana. Em Belo Horizonte e Região
Metropolitana, onde mais vidas foram ceifadas (13 em Belo Horizonte,
6 em Betim, 5 em Ibirité e 2 em Contagem) há um déficit
habitacional acima de 150 mil moradias. Além de fertilizar a terra e
recarregar as nascentes e mananciais, a irmã chuva está gritando
por políticas públicas sérias e idôneas, tais como política
agrária e política de moradia popular adequada para todos/as.”
Frei Gilvander é nosso articulista às terças-feiras
Frei Gilvander Luís Moreira é frei e padre e fez mestrado e doutourado em Educação
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