LADOS OPOSTOS - Petra entrevista o então deputado Jair Bolsonaro: gentileza na gravação e farpas após o filme |
"A
cineasta Petra
Costa falou
ao editor Marcelo Marthe e ao repórter Eduardo F. Filho sobre a
indicação ao Oscar.
Como
nasceu Democracia
em Vertigem? O
filme nasceu de um susto. Um dia decidi filmar uma manifestação e
fiquei em choque ao ver que muitos estavam pedindo a volta da
ditadura militar. Nesse dia, jovens vestidos de vermelho, que também
protestavam contra Dilma, tiveram de ser escoltados pela polícia. Eu
quis entender aquilo, entender de onde aquele ódio tinha surgido.
Nossa equipe se dividiu entre os protestos de rua, o Congresso, e, um
tempo depois, conseguimos também filmar os bastidores do palácio.
Eu queria captar o pulso da sociedade em suas diferentes camadas.
A
ex-presidente Dilma Rousseff declarou que a indicação é a
“denúncia do golpe no Oscar”. Democracia
em Vertigem é,
afinal, o “filme do PT” no Oscar? Um
dos mais importantes documentários americanos se chama Primary e
retrata as primárias antes da eleição de Kennedy. Nunca vi ninguém
comentar que é um filme pró-democratas. No caso de Democracia
em Vertigem,
conta-se a história de um período político do país por meio da
história da minha família. Eu expus ali a história dos meus avós,
dos meus pais e a minha para que o espectador tivesse em mãos todas
as informações de que ele precisava para entender o meu ponto de
vista. Afinal, todo documentário é um ponto de vista. Ao longo do
filme, sou honesta sobre minhas decepções, minhas dúvidas e minha
esperança.
As
reações extremadas a surpreenderam? Nos
primeiros meses depois que o filme foi lançado, saía um tuíte por
minuto sobre ele. A maioria das pessoas dizia que estava chorando,
era uma espécie de catarse. Recebi críticas da esquerda e da
direita, mas também mensagens de pessoas que haviam apoiado o
impeachment. Apesar da polarização das redes, deputados do PSDB e
até do PSL me escreveram para contar que tinham amado o filme. Um,
do PSL, disse que fez questão de mostrá-lo a todo o gabinete.
Sua
proximidade com Lula e o PT é atestada pelo fato de Lurian, filha do
ex-presidente, ter vivido com sua família em Paris nos anos 90. Até
que ponto a intimidade com Lula abriu as portas? Logo
depois que minha irmã Elena morreu, aos 20 anos, minha mãe queria
ir para um lugar onde não tivesse memórias dela, e escolheu fazer
um mestrado em Paris. Nessa mesma época, ela tinha ficado
sensibilizada com a exposição da Lurian, tão nova, na eleição de
1989, e a convidou para ir conosco. Minha mãe não era próxima do
Lula, o convite foi feito por meio de uma amiga em comum. E ela
topou. Nós nos vimos pouco desde que voltamos, mas o carinho
permanece. Eu só tinha 8 anos na época e não cheguei a conhecer o
Lula, apenas o vi falar em público algumas vezes. Em 2016, escrevi
uma carta em que pedia uma entrevista. Soube depois que ele nunca a
leu. Passei 24 semanas insistindo para gravar até ele topar, depois
de um dia em que fiquei dez horas plantada no instituto dele.
A
exposição confessional de sua vida é uma marca de Democracia
em Vertigem.
Por que se abrir tanto diante das câmeras? Minha
formação é em antropologia, por isso sempre duvidei da tentativa
de retratar objetivamente a realidade. Quando comecei a fazer filmes,
decidi que o mais honesto seria assumir a imperfeição do meu olhar.
Além disso, também sentia falta de ver na tela o que eu vivia como
adolescente e mulher. O cinema me parecia excessivamente machista,
salvo raras exceções. O lema feminista de que “o pessoal é
político” inspirou muito meus primeiros filmes. Com Democracia
em Vertigem,
a equação se inverteu: quis investigar como o político é pessoal.
E acredito que esse é um sentimento comum a todos no Brasil hoje.
Afinal, a convulsão social rachou famílias, revelou o caráter das
pessoas, distanciou amigos. Nossa sociedade foi mexida em suas
entranhas. Muito do que vimos não era bonito. Mas era real.
Há
especulações sobre a presença da ex-presidente Dilma na festa do
Oscar. Está em seus planos levar sua personagem principal à
premiação? Foi
uma grande diversão ver a reação das pessoas nas redes sociais. Eu
rio muito, tanto dos memes de apoiadores como de críticos. Achei
engraçado ver que muitas pessoas encontraram na especulação sobre
a ida da Dilma à cerimônia uma forma de reparação histórica.
Nos
tempos do impeachment, especulou-se que Dilma só havia ido a seu
julgamento no Senado para ter seu discurso filmado para o
documentário. É verdade? Só
quem não conhece a Dilma acreditaria que ela toparia ser dirigida
para um documentário. Levei meses para conseguir entrevistá-la.
Quando o dia finalmente chegou, achei que seria bonito filmá-la nos
arcos do Palácio da Alvorada, e montamos o equipamento lá. Mas,
quando ela apareceu, ficou indignada e quase foi embora. Disse que o
impeachment não era algo bucólico. Por fim a convencemos, e ela
conversou com a gente. Foi uma entrevista curta e formal. Demoraria
ainda meses para conseguir entrar num carro com ela.
O
presidente Bolsonaro não assistiu ao filme, mas disse que é “bom”
para quem gosta de “comida de urubu”. O que pensa do
comentário? Ele
disse que não viu o filme. Assim, não acho que preciso comentar.
Quero chamar atenção para o fato de que historicamente a extrema
direita sempre apelou para expressões como essa, comparações com
animais, para retirar a dimensão humana do opositor. Quando o
caráter humano do adversário é apagado, fica mais fácil qualquer
violência ser aceitável. Um dos pilares da democracia é tratar o
adversário com respeito. Espero que isso possa ser resgatado no
Brasil.
Como
foi a experiência de ver de perto o processo de impeachment da
ex-presidente? Fogos
de artifício marcaram cada etapa do processo. A condução
coercitiva de Lula, o dia 17 de abril, a posse de Temer e a eleição
de Bolsonaro. Eles vinham anunciando o raiar de um velho dia. Neste
ano novo, percebi quanto esse ruído havia me traumatizado. Eu nunca
tinha entrado no Congresso Nacional. E de repente estava ali,
assistindo em primeira mão aos bastidores de uma crise que mudou
nosso destino. Foi uma experiência única. Deprimente e única.”
Fonte:
MSN / Veja de 22 de janeiro 2020, edição nº 2670
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