Por Tereza Cruvinel
Articulista
diz que a pesquisa Datafolha deste domingo "precisa ser lida
pelo reverso": "Se apenas 36% consideram o governo
Bolsonaro ruim ou péssimo, outros 62% não estão incomodados"
31/12/2019
“Quando
2019 for revisitado lá adiante, quando tudo isso tiver passado, pois
não há mal que sempre dure, haveremos de nos perguntar: como
pudemos tolerar tudo aquilo sem nos revoltar?”, coloca a jornalista
Tereza Cruvinel. Ela diz ainda que a pesquisa Datafolha deste domingo
“precisa ser lida pelo reverso”: “Se apenas 36% consideram o
governo Bolsonaro ruim ou péssimo, outros 62% não estão
incomodados”
Lá
se vai 2019, o ano de Bolsonaro, ano trevoso, de mentiras e torpezas.
Quando ele for revisitado lá adiante, quando tudo isso tiver
passado, pois não há mal que sempre dure, haveremos de nos
perguntar: como pudemos tolerar tudo aquilo sem nos revoltar? Como
pudemos nos silenciar diante do esbulho de direitos, das mentiras
diárias, da semeadura de preconceitos, dos ataques à cultura e ao
conhecimento, do empurrão constante do Brasil rumo à barbárie, do
flerte com a morte pelo incentivo à violência, até mesmo no
momento natalino, com o indulto a policiais assassinos e a celebração
do aumento de armas em mãos de brasileiros?
A
pesquisa Datafolha parcialmente divulgada neste domingo precisa ser
lida pelo reverso, valorizando a omissão, a cumplicidade monstruosa
com tudo o que está aí. Se apenas 36% consideram o governo
Bolsonaro ruim ou péssimo, outros 62% não estão incomodados,
enxergam em tudo uma normalidade inaceitável, pois 30% o
consideram ótimo ou bom e 32% regular. Se acham regular, não estão
vendo nada de anormal. Esta, a meu ver, é a pior notícia para o ano
que vem aí. Indica o quão longe estamos de construir na sociedade
uma maioria que diga não à brutalidade a que estamos submetidos.
Com 62% aplaudindo ou cruzando os braços, eles – Bolsonaro, seus
lacaios e a extrema direita – vão continuar passando o trator
sobre as universidades, os direitos trabalhistas, a rede de proteção
social, os direitos humanos, o meio ambiente, a cultura e tudo mais.
Não há dia em que mais de uma atrocidade não seja anunciada.
Equipe do governo Bolsonaro |
É
irrelevante a comparação da rejeição a Bolsonaro com a reprovação
ao Congresso (45%), que está em desgraça junto à população há
anos, especialmente depois da campanha de demonização da política
levada a cabo pela aliança mídia-Lava Jato. Ou com a do Supremo
(39%), um poder que nem tinha antes sua avaliação aferida pelo
instituto por conta de um protagonismo menor, que nos últimos anos
cresceu.
É
o Executivo que tem o saco de maldades, o poder de arrasar com tudo,
inclusive com as instituições democráticas. O chefe do Executivo é
que foi eleito por voto majoritário. Por justiça, vale reconhecer
que o Congresso, embora apoiando a agenda econômica neo-liberal,
conteve os ímpetos de Bolsonaro na guerra cultural e na agenda
comportamental, impedindo a aprovação de projetos como o Escola sem
Partido. E mesmo na agenda econômica, foi o Congresso que mitigou a
reforma previdenciária proposta por Paulo Guedes, evitando, por
exemplo, a elevação do tempo de contribuição mínimo das mulheres
de 15 para 20 anos. Da mesma forma, o Supremo tem imposto alguns
limites, desautorizando, por exemplo, o fim do DPVAT ou a extinção
dos conselhos sociais por decreto, sem falar na poda das asas da Lava
Jato. Veremos agora se será capaz de condenar a MP que fere de morte
a autonomia universitária.
O
que espanta, ao final de um ano desatinado, é que 62% não percebam
que estamos sendo atacados de dentro, por um governo que fala em Deus
para fazer o mal, submisso à maior potência global, interessada em
nos recolonizar como quintal. Guardadas as proporções, a situação
permite um paralelo com a indiferença do povo alemão diante da
ascensão de Hitler e do avanço do nazismo. Ainda em 1930, diante do
segundo lugar nas urnas obtido pelo Partido Nacional-Socialista de
Hitler, o escritor Thomas Mann fez o primeiro de seus muitos alertas,
numa célebre conferência intitulada Um Apelo à Razão. Hitler já
não podia ser considerado apenas uma piada de mau gosto, disse ele.
Mann já havia ganhado o prêmio Nobel de Literatura e tinha enorme
prestígio em seu pais, mas falou em vão. Deportado com sua família
em 1936, continuou escrevendo cartas ao povo alemão. Não temos um
Mann, mas temos Lula, que em janeiro retomará suas caravanas.
Conseguirá ele sacudir povo brasileiro, romper esta prostração
letárgica?
Em
2013, quando a Alemanha recordou em penitência os 80 anos da
ascensão de Hitler, a chanceler Angela Merkel disse algo que serve
perfeitamente ao Brasil de 2019: “ Aquilo só foi possível devido
à cumplicidade e indiferença das elites e de boa parte do povo
alemão”. Relativamente às nossas elites, pesquisa recente também
apurou que 60% dos empresários apoiam irrestritamente o governo
Bolsonaro. Sim, a economia não vai bem mas eles estão ganhando com
a retirada de obrigações trabalhistas, e agora até da
fiscalização. A mais-valia cresce. O fim do Ministério do
Trabalho, criado por Vargas na aurora do trabalhismo, é símbolo
mais que perfeito da aliança governo bruto-capital selvagem.
Se
alguém tem ilusões quanto a 2020, que olhe os números do
orçamento: a fiscalização trabalhista perderá metade de seus
recursos, assim como o Minha Casa, Minha Vida. O Pronatec perderá
97%, vale dizer, vai acabar. A verba do Bolsa-Família encolheu e a
Farmácia Popular também pode desaparecer. São os pobres sendo
retirados do orçamento.
Não
podemos esquecer as mentiras de um presidente que a mídia hesita em
chamar de mentiroso com todas as letras. Bolsonaro, ainda antes da
posse, desqualificou os médicos cubanos, que andam fazendo tanta
falta, dizendo que alguns nem médicos eram. Teve a cara de pau de
dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Que os radares nas
estradas, longe de prevenir acidentes, produziam aumento. Que as ONGS
é que tocaram fogo na Amazônia. Que não há fome no Brasil e que
nossas universidades não produzem pesquisas. Que o ator Leonardo di
Caprio financiou ações contra a Amazônia para culpar seu governo.
Foi capaz de anunciar a possibilidade de ter câncer de pele para
depois acusar a imprensa de ter produzido fake-news sobre o assunto.
O arsenal é grande e cansativo.
As
torpezas não podem ser esquecidas. Chamou a mulher do presidente
francês de feia, louvou a morte do pai de Michele Bachelet pela
ditadura Pinochet e insinuou que o pai do presidente da OAB não foi
morto nos porões, pela tigrada do regime militar, mas por
companheiros da própria esquerda. Em compensação, disse I love you
para Donald Trump.
Não
falemos na política externa, a mais desastrada que o Brasil já teve
desde a independência.
Por
tudo isso, pelos 62% que estão achando tudo normal, é muito
difícil, nestas horas finais de dezembro, dizer um sincero “Feliz
Ano Novo”.
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