Será que mudou muito? A ciência moderna continua afirmando que o amor embaralha o cérebro. [Imagem: Duncan Dao/Pixabay] Por Anna Peirats - The Conversation |
Outro tema de pesquisa científica atual é onde no corpo nós sentimos o amor. [Imagem: Parttyli Rinne et al. - 10.1080/09515089.2023.2252464] |
A visão dos médicos
O médico Constantino, o Africano [século 11], na sua tradução de um tratado sobre a melancolia, estabeleceu uma conexão direta entre o excesso de bílis negra e o mal do amor. A causa da doença seria o excesso de bílis negra, que explicava a associação entre "amor" e "amaro" (amargo). Segundo ele, a doença afetava o cérebro e poderia causar intensos pensamentos e preocupações no amante. Nesta mesma linha, a tese de Boissier de Sauvages (1706-1767) relacionava a doença do amor à melancolia.
Segundo a obra Lilium Medicinae (1303), de Bernard de Gordon, a causa da doença era o "amor de mulheres" e poderia causar a morte do paciente. Acreditava-se que o homem ficaria obcecado pelas imagens da mulher amada e as arquivaria no cérebro. E, nestas circunstâncias, a temperatura do corpo, o movimento sanguíneo e o desejo sexual aumentavam.
No seu manual, Gordon explica os sintomas, destacando-se a coloração amarelada da pele, insônia, falta de apetite, tristeza constante pela ausência da amada etc. Este estado era considerado uma doença, chamada de amor hereos (herdeiros do amor) ou aegritudo amoris (doença do amor).
O médico medieval Arnau de Vilanova (c.1240-1311) atribuía este transtorno ao julgamento errôneo da "memória cogitativa", localizada no cérebro. O resultado era a elevação da temperatura, provocada pela antecipação do prazer sexual em nível cerebral.
Segundo o Dragmaticon philosophiae, de Guilherme de Conches (1090-1154), o cérebro seria dividido em três compartimentos, o que seria corroborado por Gordon. No primeiro compartimento, situado na parte superior da frente, ficavam as virtudes sensitivas. No segundo, atrás da frente, ficava a consciência sensitiva, onde o paciente julgava as imagens como sendo positivas ou negativas. No terceiro compartimento, situado sob a parte inferior do pescoço, se encontrava a memória sensitiva, que servia de arquivo de informatização de imagens. E o homem, propenso a idealizar a imagem da amada, tinha a função imaginativa alterada.
A ciência diz que existem três tipos de amor, e um deles nem tem amor. [Imagem: Gomez/Rodríguez - 10.13140/RG.2.2.15573.99043/1]
O amor como doença é uma constante nos textos literários da época. Na Roma Antiga, Lucrécio (séc. 1º a.C.) dedica o livro 4º da sua obra De Rerum Natura ao tema do amor. Ele o considera uma doença muito perigosa para o equilíbrio mental do ser humano.
Já o poeta espanhol Garcilaso de la Vega (c.1503-1536) descreve a doença do amor como uma condição que pode levar à loucura e à morte. No seu soneto 14, De la Vega explica como sua paixão amorosa o arrastou para o desespero, sem que pudesse encontrar descanso nem paz.
A doença do amor é encontrada em personagens conhecidos da literatura. No século 14, o Livro do Bom Amor, de Arcipreste de Hita, evidencia a luta entre o espírito cristão do amor de Deus e o "amor louco" que consome o amante. Na mesma época, El Corbacho ("O chicote"), de Arcipreste de Talavera, descreve o "louco amor" como a causa direta da alienação mental e até da morte.
Em Cárcere de Amor, de Diego de San Pedro (séc. 15), o protagonista Leriano é um exemplo da "doença do amor". Ele sofre profunda paixão amorosa por Laureola e por isso perde o sono e o apetite, até chegar à beira da morte.
Em La Celestina, de Arcipreste de Hita, Calisto, doente de amor, manifesta um desejo sexual desmedido que o leva à loucura amorosa. O próprio Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), busca até o fim que sua amada Dulcineia conheça o alcance da sua paixão.
No século 15, o personagem Tirant - protagonista do livro Tirant lo Blanc, de Joanot Martorell - também padecia do "mal de amar". Ele sofria por Carmesina e apresentava falta de apetite, insônia, choro e suspiros. E também em Espill, de Jaume Roig, o sábio Salomão diagnosticava o protagonista em sonhos com amor hereos, devido a uma paixão amorosa desmedida.
[Imagem: Sasin Tipchai/Pixabay]A doença do amor teria cura?
A dieta preceptiva consistia em evitar beber vinho, carne vermelha, leite, ovos, legumes e alimentos de cor vermelha. O motivo da proibição era que estes alimentos incitariam o movimento do sangue e o desejo sexual. O doente de amor deveria comer carne branca, peixe e beber água ou vinagre. E também era preciso suar e tomar banho antes de comer.
Além da alimentação, era recomendado dominar os impulsos carnais para submeter a vontade: colocar uma chapa de ferro frio sobre os rins - considerados a morada do desejo -, dormir em uma almofada com urtiga, tomar banho de água fria, etc.
Com todo este programa de tratamento do amor como doença, a conclusão era que a causa principal de todos os males era se deixar levar pelos instintos carnais. Uma vida virtuosa, distante da paixão desmedida, permitiria atingir a harmonia entre o corpo e a alma.
Afinal, o amor hereos poderia causar a morte física e, o que era ainda pior, a condenação da alma."
Anna Peirats |
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation, no qual poderá ser lida a versão original em espanhol.
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