“Uma vez que as guerras nascem no espírito dos homens, é no espírito dos
homens que se devem erguer as defesas da paz.”
Archibald McLeish
Ano após ano, no período de festas natalinas, uma pergunta ecoa em minha
mente: o que aconteceria com a Humanidade se o chamado “Espírito de Natal”
realmente tomasse as pessoas? O que aconteceria se as mensagens de paz,
confraternização e compartilhamento fossem efetivamente praticadas?
Em 1914, os horrores da Primeira Guerra Mundial encharcavam os campos da
Europa de sangue. Tratados de defesa mútua entre nações historicamente rivais,
somada à boa e velha ganância por dinheiro e poder, tornaram o mundo um barril
de pólvora. Todos sabiam que a guerra seria inevitável, faltava apenas o motivo.
E ele veio quando Gavrilo Princip, sérvio integrante de um grupo separatista,
matou o arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa, Sofia. O arquiduque
era o herdeiro do império austro-húngaro, que exigiu vingança.
A política de alianças políticas funcionou, e logo todas as nações da Europa
estavam envolvidas no conflito. De um lado, a Alemanha, o Império Otomano e o
Império Austro-húngaro (a ‘Aliança’). Do outro, a França, a Inglaterra e a Rússia
(a ‘Entente’). A Itália entraria ao lado da Alemanha ainda em 1914.
Em uma guerra, a primeira vítima é a verdade. E a previsão de duração da guerra
foi a primeira verdade assassinada para as populações dos países envolvidos as
batalhas. Ambos os lados afirmavam que a guerra estaria terminada até o Natal.
Mas a preparação prévia de todos para o conflito, por meio de uma corrida
armamentista que tinha durado anos, tornava essa previsão absolutamente irreal,
feita na verdade com o intuito de convencer a população a liberar seus filhos e
cidadãos em uma escala poucas vezes vista.
Milhões eram enviados para as frentes de batalha, principalmente na França e na
Bélgica. E o impasse se estabeleceu. Entrincheirados, os exércitos de ambos os
lados não conseguiam avançar, ficando às vezes separados por distâncias de
pouco mais de 300 metros entre um e outro. O espaço entre as forças
beligerantes era chamado de “terra de ninguém”. Quem ousasse erguer a cabeça
ou ficar em pé era imediatamente alvejado.
Nas trincheiras úmidas e enlameadas, as doenças levavam tantas vidas quanto
as balas inimigas. A população não sabia disto. A propaganda funcionava a pleno
vapor, não apenas para disfarçar as terríveis condições aos quais os soldados
estavam submetidos, mas também para transformar os inimigos em monstros que
precisavam ser destruídos a qualquer custo. Ilustrações e notícias mostrando
atrocidades realizadas pelos antagonistas eram comuns em ambos os lados.
Afinal, o combustível do apoio à guerra era baseado na percepção, da população,
que o outro lado era o mal a ser vencido a qualquer custo. Causar mortes se torna
plenamente justificável quando é o certo a se fazer, em nome do “bem maior”.
Os soldados morriam aos milhares diariamente. O Natal se aproximava, o primeiro
Natal de uma “guerra total”, onde todos os recursos de uma nação são voltados
para o esforço de guerra. Pedidos de trégua aparecem. Sufragistas britânicas,
lideradas pela ativista Emily Hobhouse, enviam mensagem pública às mulheres
da Alemanha e da Áustria, a “Carta Aberta de Natal”, carta esta que foi
respondida posteriormente por 155 proeminentes mulheres alemãs e austríacas.
O papa Bento XV procura utilizar da força política do Vaticano e propõe uma
trégua oficial entre os países em guerra, de maneira que “as armas pudessem
cair em silêncio, ao menos na noite em que os anjos cantam”, pedido que foi
prontamente negado pelas autoridades.
Na frente de batalha, vivenciando algo próximo ao inferno de Dante, os soldados
recebiam cartas e mais cartas dos parentes distantes. Os sentimentos de saudade
e crítica crescem naqueles que estão na frente de batalha, vivendo com e como
ratos, enquanto o Natal se aproxima.
Eis então que o Espírito de Natal começa a operar.
Tão próximas estavam as trincheiras que era possível se ouvir o inimigo. E, na
noite de Natal de 1914, soldados britânicos na região de Yprés, na Bélgica,
escutaram algo que não pensariam jamais em ouvir tão cedo: pessoas cantando.
Os soldados alemães estavam cantando músicas de Natal. Os britânicos
responderam com suas próprias versões das canções, os alemães começaram a
cantar juntos em sua própria língua. E onde a Morte reinava, a Música prevaleceu.
Na manhã de Natal, o milagre se espalhou. Em diversos locais na frente de
batalha, uma trégua informal aconteceu. Há relatos que em uma determinada
área, um soldado alemão tomou coragem e avançou na “terra de ninguém”
munido de uma improvisada árvore de Natal em uma das mãos, enquanto a
outra se mantinha erguida, enquanto seus colegas também corajosamente se
erguiam das trincheiras com os braços levantados e acenando. Os britânicos
entenderam, e baixaram as armas. Outros relatos indicam gritos de uma rápida
negociação – “não atire que eu não atiro”, e novamente os rifles e metralhadoras
foram deixados de lado.
A guerra parou, não por ordens de pessoas protegidas em palácios distantes, mas
por homens simples que se deram a oportunidade de vivenciar e agir como os
ensinamentos que o período do ano tanto enfatizava. Presentes foram trocados.
Fotos foram tiradas. Abraços foram dados. Em uma frente de batalha, há relatos
de uma improvisada partida de futebol realizada entre germânicos e britânicos
(dizem que os alemães venceram por 3 a 2). Uma missa foi celebrada. Cerimônias
fúnebres foram realizadas, inimigos enterrando juntos os amigos que partiram.
E conversas, muitas conversas. Aqueles que antes se matavam sem nunca olhar
nos olhos um do outro, agora estavam frente a frente, e viam o quanto eram
semelhantes – nas angústias, nos sonhos, nas saudades, nos medos e nas
alegrias. Onde estavam os monstros? Onde estavam os inimigos?
Os relatos da trégua começaram a ser publicados na imprensa. As cartas dos
soldados relatando o ocorrido, as fotos, as ações efetuadas em conjunto, tudo
era um ataque inesperado à propaganda oficial, que vendia os inimigos como
monstros. Indignado, o general britânico Sir Horace Smith Dorian escreve um
memorando alertando sobre os relatos de confraternização entre inimigos e pede
os nomes dos soldados e oficiais envolvidos no caso, solicitando que sejam
julgados por traição, um crime punível com a morte por fuzilamento. O Alto
Comando alemão também enviou ordens para que qualquer iniciativa de
confraternização com inimigos fosse considerada passível de punição.
Afinal, e se os homens decidissem, sozinhos, a não mais lutar? E se a crítica ao
fato de milhões estarem morrendo pelo ego de poucos gera desobediência em
massa? E se a Humanidade finalmente entendesse que a paz chega aos homens
de boa vontade?
O Espírito de Natal precisava ser combatido.
Oficiais foram mandados aos locais onde a trégua ainda acontecia. Ordens
expressas para atirar no inimigo foram dadas. Em uma área, o Espírito de Natal
foi assassinado à bala, quando um oficial britânico disparou seu rifle em um
soldado alemão desarmado, matando-o e imediatamente reiniciando o conflito.
Em outras, o medo da punição foi suficiente, e as batalhas ressurgiram ainda
mais sangrentas. Dentro do possível, o caso foi abafado pelos comandos de
ambos os lados. A última coisa que se queria era que as populações percebessem
que a paz não somente era possível, como para isto bastava dizer “não”.
E o Espírito de Natal se foi.
No ano seguinte, medidas preventivas foram tomadas pelos senhores da guerra,
de maneira que o sangue não parasse de jorrar em momento algum. A
criatividade humana começou a resolver o impasse das trincheiras, por meio de
inovações que mudariam a guerra para sempre: os bombardeios aéreos, a
introdução do tanque de guerra e o uso indiscriminado de agentes químicos.
A carnificina somente pararia em 1918. Uma pausa para um horror ainda maior,
que começaria 21 anos depois e levaria ainda mais vidas.
Atualmente, a trégua de Natal pode ser lembrada em um museu na região onde a
pausa voluntária e informal da guerra começou. E nos relatos e fotos daquele que
sobreviveram para contar o que aconteceu. O historiador norte-americano Stanley
Weintraub estimou em cem mil soldados que participaram da trégua natalina em
1914.
Depois que conheci esta história, ano após ano nas noites natalinas eu me
transporto para junto daqueles homens – por alguns momentos que sejam.
Relembrar este fato tão marcante me enche de esperança. Talvez, em algum
momento em nossa jornada neste pequeno e lindo planeta, decidiremos agir
conforme os ensinamentos daqueles que elevaram a consciência humana além
das trevas da mera existência. Talvez, em algum momento, perceberemos que
individualidade e coletividade são complementares, e o que consideramos como
inimigo na verdade é ignorância, medo e raiva. Em algum momento, notaremos
que a proximidade é que nos permite perceber as semelhanças, e que somente
assim pode-se exercer a coragem verdadeiramente transformadora. Entenderemos
que exercer virtudes não é fraqueza, mas é o que verdadeiramente nos torna fortes
como seres humanos.
Ano após ano, sonho com o momento em que a Trégua de Natal se espalhe como
fogo por toda a Terra. E que diremos “não” a todos aqueles que ousarem ordenar
qualquer coisa que seja contrária à vida, ao bem comum e à paz entre os seres
humanos.
Assim, todos os dias serão dias de Natal. E conheceremos os doces e reais frutos
da principal defesa contra o espírito da guerra: a Fraternidade.
Maurício Luz |
1º Belmiro Siqueira de Administração – em 1996, na categoria monografia, com o tema “O Cliente em Primeiro Lugar”.
E o 2ºBelmiro Siqueira em 2008, com o tema “Desenvolvimento Sustentável: Desafios e Oportunidades Para a Ciência da Administração”..
Ex-integrante da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Conselho de Administração RJ.
Com experiência em empresas como SmithKline Beecham (atual Glaxo SmithKline), Lojas Americanas e Petrobras Distribuidora, ocupando cargos de liderança de equipes voltadas ao atendimento ao cliente.
Maurício Luz é empresário, palestrante e Professor. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997).
Mestre em Administração de Empresas pelo Ibmec (2005). Formação em Liderança por Condor Blanco Internacional (2012).
Formação em Coach pela IFICCoach (2018). Certificado como Conscious Business Change Agent pelo Conscious Business Innerprise (2019).
Atualmente em processo de certificação em consultor de Negócios Conscientes por Conscious Business Journey.
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