"A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) repudia e questiona o licenciamento da Fábrica da Heineken em Pedro Leopoldo/MG. Em Nota, a SAB apresenta a ilegalidade do licenciamento ambiental e do uso político da suposta incompatibilidade do desenvolvimento econômico com preservação ambiental e arqueológica. O Sítio Arqueológico onde foi encontrado o crânio de Luzia, de 11 mil anos, um dos mais importantes sítios arqueológicos das Américas e um importante reserva hídrica está gravemente ameaçados pela implantação de uma fábrica de cervejaria transncional Heineken, da Holanda! Confira, abaixo, a íntegra da Nota da SAB.
Nota da SAB sobre a ilegalidade do licenciamento ambiental – Cervejaria
Teresina, 16 de outubro de 2021.
A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) manifesta repúdio à ilegalidade e irregularidades do processo de licenciamento ambiental, referente à implantação de uma fábrica de cerveja do grupo Heineken, no município de Pedro Leopoldo, estado de Minas Gerais, assim como, à disseminação de informações falsas com o objetivo de colocar a população contra a preservação e conservação do patrimônio ambiental e cultural desta região.
A SAB vem acompanhando, desde 2020, o processo de Licenciamento Ambiental da fábrica que pretende se instalar na Área de Proteção Ambiental Federal Carste de Lagoa Santa, implantada em 1990, situada na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), mais precisamente em local vizinho ao Sítio Arqueológico Lapa Vermelha.
O Sítio Arqueológico da Lapa Vermelha vem sendo pesquisado desde os anos 1970 e é o local onde foi encontrado um dos remanescentes humanos mais conhecidos da arqueologia das Américas, a Luzia, e um dos mais antigos do continente. Trata-se de um grande conjunto de abrigos e grutas que apresenta uma grande riqueza de dados arqueológicos para a reconstituição do passado da região, com diversos tipos de vestígios, como diversos grafismos rupestres e materiais líticos, associados a uma série de datações que demonstram a antiguidade, continuidade e persistência da ocupação ameríndia na região. O esqueleto de Luzia, escavado no abrigo de número IV, é o mais antigo e, sem dúvida, o mais emblemático da série de remanescentes humanos da região, que forma a maior conjunto de remanescentes humanos de datações entre 11.500 e 8.000 anos de todo o continente americano.
O Patrimônio Arqueológico Brasileiro, a que as gerações atuais e futuras têm direito, está protegido pela legislação brasileira, conforme consta na Carta Constitucional de 1988 (Artigos 20, 23, 24, 30, 215, 216), Lei Federal nº. 3.924/1961, Lei Federal nº. 7.542/1986, Lei Federal nº. 9.605/1998 (Capítulo 5, Seção 4), Resolução CONAMA nº. 001/1986 (Artigo 6, Alínea C) e, ainda, em Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Carta de Nova Delhi (1956), Recomendações de Paris (1962, 1968), Carta de Veneza (1964), Carta de Lausanne (1990), Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico (1990), Carta de Sofia (1996), todas aprovadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), órgão que faz parte da ONU (Organização das Nações Unidas).
Assim, considerando que a região de implantação da fábrica é uma na Área de Proteção Ambiental Federal e que grande parte desse território foi incluída, em 2017, como área úmida de importância internacional (Sítio RAMSAR Lund Warming), o arcabouço legal que protege a região é o citado acima – precisamente o Sítio Arqueológico Lapa Vermelha, bem registrado no Cadastro Nacional de Sítios de Sítios Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CNSA/IPHAN) e, portanto, protegido em âmbito federal. Sendo assim, é incorreto que o processo de Licenciamento Ambiental ocorra sob tutela apenas da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) de Minas Gerais, sem o envolvimento de órgão federais, como o IPHAN. Além disso, é inadequado que, numa região de relevância arqueológica internacional e notória, se aplique o chamado Licenciamento Simplificado, isento de estudos de maior profundidade e de avaliação arqueológica.
Cabe ressaltar que o processo de licenciamento do empreendimento, como se pode ver claramente tanto no que se refere à ausência de participação dos órgãos públicos adequados, quanto na própria documentação do processo, “ignorou” o fato da Lapa Vermelha ser um sítio arqueológico de enorme relevância. Sequer há menção, no parecer da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais, à existência do conjunto arqueológico, embora a área de implantação da fábrica se encontre parcialmente dentro da dolina cárstica da Lapa Vermelha,
O parecer “nº 14/2021/APA Carste de Lagoa Santa/ICMBio – assunto: Ciência de Licenciamento de Fábrica de Cerveja em Pedro Leopoldo”, emitido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio-MG) em 05 de agosto de 2021, também apontou iminentes riscos ao meio ambiente. Dentre os quais, destaca-se que o empreendimento pretende realizar intensa a retirada de água do subsolo que poderá implicar em impactos nas cavidades componentes do Sítio Arqueológico Lapa Vermelha.
É oportuno mencionar que a Área de Proteção Ambiental Federal Carste de Lagoa Santa foi instituída “após muitos debates de cunho interdisciplinar, quando foi estabelecido o seu plano de manejo e zoneamento ambiental, justamente com a intenção de proteger os frágeis sistemas subterrâneos, aquíferos, as suas cavernas, bem como o grandioso patrimônio paleontológico e arqueológico, englobando a sua biodiversidade, prevendo a proteção e conservação eficaz das suas importantes cavernas e sítios arqueológicos[1]”.
Sendo assim, além de todos os apontamentos acima descritos em relação à necessidade de o Licenciamento Ambiental da área ser em âmbito federal, o parecer do ICMBio também apontou que Plano de Manejo da Área de Preservação Ambiental (APA) Carste não permitiria a instalação da fábrica por ter potencial de gerar impactos de grande porte, ao contrário da classificação como “médio” porte pela SEMAD de Minas Gerais. Além disso, a Superintendência do IPHAN em Minas Gerais manifestou tanto à SEMAD de Minas Gerais como ao Ministério Público a necessidade da participação do Instituto no processo de Licenciamento Ambiental. O Ministério Público de Minas Gerais também tem atuado com veemência e instaurou no último dia 21 de setembro um Inquérito Civil para apurar os possíveis impactos ao patrimônio cultural pela construção da fábrica.
Pelo exposto, fica evidente que nenhuma pessoa ou instituição é contrária a empreendimentos que promovam o desenvolvimento econômico de localidades, desde que eles ocorram de maneira responsável com o meio ambiente e o com patrimônio cultural e que sejam cumpridas as exigências legais, garantindo a preservação da integridade de bens ambientais, culturais e de comunidades tradicionais. O sítio arqueológico da Lapa Vermelha é um bem da União, ou seja, da população brasileira, em especial, de quem mais próximo dele vive, o povo de Pedro Leopoldo, e está sendo “negado” e usado, em um falso argumento como um “impedimento” ao desenvolvimento da região. Cultura, ciência e desenvolvimento econômico não são contrários entre si, mas há prerrogativas que devem ser garantidas ao povo pelo Estado. Como comunidade arqueológica, não devemos nos calar diante desse assombro jurídico e negacionista da ciência.
Pular etapas ligadas ao Licenciamento Ambiental não se trata apenas de descumprir a Constituição Federal, acordos internacionais e demais legislações vigentes. Mais do que isso, trata-se de uma ameaça ao patrimônio ambiental, cultural e arqueológico brasileiro, esse último bem único, não renovável e insubstituível em sua particularidade, e imprescindível para o fortalecimento de identidades e o reconhecimento de processos sociais de desigualdade e dominação. O Patrimônio Arqueológico Brasileiro é um bem coletivo, e o direito a seu acesso e preservação é uma obrigação pétrea de gestores em âmbito municipal, estadual e federal."
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua opinião é sempre bem-vinda!