No artigo “A Crise na Educação”, Hannah Arendt diz que cabe à educação ser o caminho de apresentação do mundo para as crianças, os professores, representantes de um mundo já posto, apresentam o mundo aos mais jovens, recém-chegados, aqueles que são introduzidos à vida coletiva. Essa relação de velho e novo abre a perspectiva de manter o que é existe e merece ser mantido (conservação), mas abre a possibilidade de que os mais novos efetuem as transformações necessárias, num campo infinito de potencialidade (transformação, mudança). Assim, a relação garante a estabilidade e a transformação do mundo.
Podemos fazer um exercício de transpor essa ideia, ao tratar de Políticas Públicas, ações estatais públicas para atender as previsões legais, no caso, a Constituição da Repúblicas, de 1988. Nesse comparativo, a política pública tem o papel de criar e desenvolver ações de permanência na ação estatal, garantindo sua continuidade e durabilidade, ao mesmo tempo que ao atuar, muda as realidades alvo, reduzindo as desigualdades e criando condições equânimes de sobrevivência dos cidadãos. Essa é uma perspectiva no ideal.
Na vida real, o Brasil sempre padeceu da continuidade e abrangência das políticas públicas. Isso se explica pelo caráter incompleto do Estado Brasileiro, descrito também em diversos estudiosos que falam sobre a formação do Brasil em geral e do Estado brasileiro em específico. Possuímos estrutura estatal que demorou a se formar, que atende a interesses de elites e que tarda a estabelecer uma constituição com caráter mais abrangente e universalizadora de direitos, que inclusive em seu processo constituinte foi palco de disputas sobre ampla deveria ser a sua capacidade de garantidora de direitos, sempre a disputa de interesse entre as classes.
Milton Santos usou uma expressão muito bonita, ao falar a Silvio Tendler no documentário “Por uma outra globalização”, feito a partir do livro de mesmo nome, ao usar a ideia de “ensaios de humanidade”. Estamos nós, no Brasil, a viver “ensaios de democracia”, ainda jovem, ainda pouco experimentada, ainda burocrática e protocolar, mas em construção e sempre sabotada por quem quer conservar privilégios. Esse é o cenário que temos: uma constituição chamada cidadã, políticas que devem atender suas previsões constitucionais, contrastadas com uma capacidade técnica, científica e produtiva nem sempre à serviço coletivo.
A Constituição prevê, para educação – “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” O artigo 206 ainda estabelece liberdade de pensamento, igualdade de condições, pluralismo, gratuidade, valorização profissional, piso salarial, qualidade, gestão democrática.
Esses são então, princípios orientadores das políticas públicas em educação, para garantir seu caráter de permanência enquanto política estatal e transformação, quando atrelada às reduções de disparidades que não ornam, que não estão de acordo com as previsões constitucionais.
Não à toa, se considerarmos a História da Educação no Brasil, esses princípios são muito recentes, pouco mais de 30 anos, frente ao nosso histórico. Vide que a educação no país sempre foi carente de uma orientação republicana, universal e laica. Além disso, sempre atendeu interesses dominantes (educação rígida, seletiva, discriminatória). Só se amplia conforme as necessidades de capacitação do próprio modelo produtivo e caminhos econômicos que o Brasil foi tomando ao longo da história. Não por engano, a universalização do ensino e todas as deficiências que ainda assistimos na educação pública, são fruto de ausência de projetos de longo prazo que tivessem um plano para educação.
Essas condições, também se conectam com as características do nosso modo capitalista atual: sociedade de massas, desregulamentada, individualizada, precarizada, sem proteção social e que chama de empreendedorismo o abandono das pessoas à sua própria sorte. Um cenário de abandono da pessoa a si mesma, a perspectiva de que cada um deve construir a si de forma individual, sendo portanto, individual o fracasso e o sucesso, desconsiderando os elementos socioeconômicos que cercam as pessoas e as desigualdades dela advindas.
A perspectiva pouco coletiva, reflete nas políticas públicas de educação. São elas capturadas pela lógica de mercado e muitas vezes acabam por fortalecer ações que nada tem a ver com os elementos norteadores da Constituição, sendo até mesmo contraditórios à eles: estruturas escolares sucateadas e sem manutenção, programas governamentais de transferência de recursos para o setor privado (drenagem), corte de verbas para pesquisa e desenvolvimento científico, sufocamento orçamentário das universidades públicas e institutos federais, minimização do papel pedagógico (homeschooling, militarização), e um fator importante, a captura do currículo como uma captura da própria política pública, que passa a ser mais uma modelagem sistêmica, do que uma visão coletiva de transformação. Mantém e agrava discrepâncias e desigualdade, é conservadora no sentido ruim, ao manter elementos excludentes, conservar as raízes de distinção de classe.
Isso se expressa na defesa de práticas que estão na moda, que sempre falam em adaptação, flexibilidade, conformação, adaptação, resignação, mas raramente transformação. É o que Dardot e Laval inscrevem na “construção do ser neoliberal”. A captura agora é mais do que a conformação de corpos, como no período industrial, mas de modelagem de mentalidades.
Nesse sentido, cabe aos interessados nas políticas públicas em geral, e aos interessados nas políticas de educação em específico, analisar o que temos vigente, as constantes propostas de “reformas”, que mudam para não mudar, ou que propõem modificações que segmentam cada vez mais a compreensão humana e a capacidade de pensar. Quem atua em políticas públicas, tem que atentar aos princípios das políticas e aos resultados esperados, não como produtividade ou mentalidade mercadológica, mas como filosofia que guia as práticas. Exercitar, cultivar, como escreveu a professora Adriana Novais, em alusão a Hannah Arendt, cultivar a vida do espírito.
Essas capacidades de pensar, julgar, agir, devem auxiliar nas respostas de quais políticas devemos construir, com quais finalidade, com quais impactos públicos, afinal são políticas de estado, garantindo um compromisso da educação com a emancipação humana da ignorância e da barbárie. Política Pública é para efetivação constitucional; deve atender interesses públicos, não privados. Para isso, deve ser construída como uma inovação democrática. Inovação porque o Brasil viveu pouquíssimo a democracia; ser democrático neste país, é ser inovador.
Por fim, lembrar Saviani, em escola e democracia: numa sociedade de classe, a educação está condicionada à política, mas não totalmente determinada. Coloquemos o peso necessário, mas não total na educação e lutemos por políticas públicas contínuas que nos garantam a continuidade de conservação necessárias, mas também a possibilidade das transformações e mudanças tão necessárias. Pensar pode ser um antídoto contra a barbárie, nosso gatilho para ação. Então, sigamos pensando e agindo."
Tiago Mafra |
Tiago Mafra é professor de geografia da rede pública municipal e voluntário no pré-vestibular comunitário Educafro desde 2009, Mestre em Educação (UNESP) e Secretário Geral do Partido dos Trabalhadores em Poços de Caldas.
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