“Não sois máquina! Homens é que sois!”.
Charles Chaplin
Não canso de repetir que um dos meus maiores d'armas nesta vida é o de encontrar pessoas que me tornam mais humano, mais sábio, mais atento ao que realmente faz com que tenhamos vida antes da morte. Há poucos dias atrás tive mais um destes momentos que, literalmente, me nutrem e me enriquecem.
Foi um almoço com uma amiga. Seu nome é Andréia Belusso. Ela é da minha turma de doutorado, e tem uma carreira em uma área que une ciência e arte como poucas: a Gastronomia. Ela é sommelier, e domina a maestria de combinar vinhos com as comidas que lhes fazem dueto.
Em determinado momento, nossa conversa fluiu para a carreira à qual ela se dedica. Pude perceber a paixão sobre o tema em seus olhos, à medida que me explicava sobre como a combinação adequada entre vinhos e pratos incrementa a experiência sensorial de quem os degusta. Logo, a conversa fluiu para um ritual que a aceleração do ritmo de nossas vidas nos tirou: o ritual das refeições.
Minha nova amiga compartilhou as experiências que teve na Itália e que a levaram a perceber, em um nível profundo, a importância das refeições para nossa nutrição – não apenas do corpo, mas também da alma.
Enquanto ela dividia comigo seu tempo e sua sabedoria, refletia sobre o impacto que a Revolução Industrial provocou em nossas vidas. A fábrica trouxe consigo não apenas uma nova forma de produção de bens e riqueza, mas uma nova maneira de ver e de lidar com o mundo.
A supremacia da industrialização fez com que as pessoas migrassem do campo para as cidades. A linha de montagem substituiu o artesanato, a padronização e a economia de escala substituíram a autenticidade. Abandonamos o ciclo das estações para abraçar o ciclo dos ponteiros do relógio. Os organismos passaram a ser máquinas de carne, meras estruturas bioquímicas. E uma nova palavra passou a fazer parte de nosso vocabulário: a produtividade.
O ser humano contemporâneo é filho da fábrica e da linha de montagem. Neste conceito de mundo e de vida, o tempo é um recurso a ser gerenciado. E como recurso, sua utilização precisa ser “maximizada”, outra palavra nascida na esteira da produção. Não é incomum que o tempo passado “sem nada a fazer” seja considerado tempo perdido. Podemos não estar mais em frente a uma linha de produção, com nossos corpos e mentes focados em encaixar o parafuso na peça à nossa frente. Mas ainda estamos focados em sermos “produtivos”. Saímos da fábrica, mas a fábrica não saiu de nós.
O legado da fábrica é que nós consideramos máquinas que podem produzir todo o tempo, com pequenas pausas para reabastecimento ou manutenção.
Para “reabastecer”, é preciso parar a máquina. E tal como os motores das fábricas, que precisavam de energia para se manter em movimento, a máquina humana também precisava de “combustível”. Isto é um problema, quando desejo maximizar minha capacidade produtiva. Se precisamos manter a produtividade ao máximo, não podemos perder tempo com nada que “atrapalhe” nossa capacidade de nos manter produzindo.
Neste contexto, surgiu o conceito de “fast food”. Um lugar onde é possível se alimentar a biomáquina sem “perder” muito tempo. O preparo é rápido, baseado em receitas padronizadas, em um cardápio simplificado, pois não se quer “perder tempo” escolhendo. Os produtos contém o necessário para manter as engrenagens funcionando. E após a refeição, não há necessidade de lavarmos louças. Tudo que foi utilizado para a contenção dos produtos pode ser descartado. Para onde? Não sei, não é minha responsabilidade. Não há tempo. Não há tempo.
No mundo dominado pelo espírito da linha de montagem, a ideia de “fast food” cresceu de forma vertiginosa. Corporações baseadas nesta filosofia se espalharam pelo mundo, alcançando resultados espantosos. A rede de “fast food” McDonald 's, uma das maiores e mais conhecidas empresas do setor, possui 35 mil lojas em 119 países. Em 2021, alcançou lucro líquido de 2,2 bilhões de dólares apenas no segundo trimestre do ano. Atualmente, a rede atende a cerca de 70 milhões de pessoas por dia, ou 1% da população mundial. Isto significa a venda de 75 hambúrgueres por segundo.
A obsessão com a produtividade nos fez perder contato com os sabores, as texturas e cores dos alimentos, o prazer da harmonização entre bebidas e comidas. Preocupados em energizar o corpo físico, perdemos o momento e a satisfação de nutrirmos nossos corpos emocionais, mentais e espirituais.
Pois um dos rituais que mais geravam conexão entre as pessoas era, justamente, a refeição. Estes momentos que, no passado, eram momentos de congraçamento entre familiares e amigos, tornaram-se momentos mais vazios, onde o intuito é de apenas saciar uma necessidade fisiológica para manter a máquina funcionando de forma produtiva.
O surgimento dos celulares apenas agravou o problema. Vá a um restaurante e observe. Não será difícil encontrar mesas com pessoas que mal se falam e se olham, preocupadas que estão em visualizar o mundo por telas de cristal líquido.
A perda deste ritual talvez nos tenha tornado menos humanos e mais máquinas.
Por este motivo que, na década de 1980, Carlo Petrini e outros ativistas iniciaram o movimento “slow food”. O objetivo do movimento, simples e profundo, é trazer de volta o significado que o ritual das refeições tem para o ser humano – um momento de nutrição não apenas para o corpo, mas também para a alma.
Enquanto ouço minha amiga, faço uma autocrítica e percebo o quanto me permite tornar-me mais robô ao não saborear profundamente o momento da nutrição. Um novo significado se abre para mim – saborear profundamente é permitir-me mergulhar na experiência dos gostos, das texturas, das cores, das temperaturas e dos aromas que me despertam os sentidos. E saborear também o momento em que faço isto, percebendo a dança da fumaça no ar, o toque do tecido que cobre a mesa, a conversa com o amigo ou amiga que gasta o tempo, o bem mais precioso que possui, para estar comigo.
E se por acaso sozinho estiver, ter a consciência que posso estar sozinho mesmo cercado de dezenas de pessoas. Basta não me sentir presente no momento, perdido em pensamentos ou preocupações que apenas me roubam minutos que são únicos.
Atualmente, o movimento “slow food” agrega milhões de pessoas ao redor do mundo. O almoço com Andréia termina, mas algo fica eternamente.
Em uma época onde a inteligência artificial está cada vez mais em nosso cotidiano, e robôs fazem as atividades rotineiras e mecânicas que nos tornaram máquinas, talvez a reconexão com nosso mais profundo senso de humanidade passa a mergulharmos nas sensações únicas que uma refeição consciente nos traz. Não somos máquinas, humanos é o que somos, quando nos permitimos fazer algo que nenhum robô é capaz de fazer: Desfrutar.
Maurício Luz |
1º Belmiro Siqueira de Administração – em 1996, na categoria monografia, com o tema “O Cliente em Primeiro Lugar”.
E o 2ºBelmiro Siqueira em 2008, com o tema “Desenvolvimento Sustentável: Desafios e Oportunidades Para a Ciência da Administração”..
Ex-integrante da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do Conselho de Administração RJ.
Com experiência em empresas como SmithKline Beecham (atual Glaxo SmithKline), Lojas Americanas e Petrobras Distribuidora, ocupando cargos de liderança de equipes voltadas ao atendimento ao cliente.
Maurício Luz é empresário, palestrante e Professor. Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997).
Mestre em Administração de Empresas pelo Ibmec (2005). Formação em Liderança por Condor Blanco Internacional (2012).
Formação em Coach pela IFICCoach (2018). Certificado como Conscious Business Change Agent pelo Conscious Business Innerprise (2019).
Atualmente em processo de certificação em consultor de Negócios Conscientes por Conscious Business Journey.
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