Pesquisadores chineses encontraram caules de maconha usados quase como um sudário em uma tumba no antigo |
Por Miguel Ángel
Criado - EL PAÍS
“O historiador da
Grécia clássica Heródoto de Halicarnaso escreveu em suas Histórias
o seguinte sobre os guerreiros da estepe: “Do mencionado cânhamo
tomam, então, a semente os citas impuros e contaminados por algum
enterro jogando-a aos punhados sobre as pedras penetradas pelo fogo,
enquanto eles ficam dentro de sua estufa. A semente levanta uma
fumaça cheirosa e desprende tanto vapor que não há estufa alguma
entre os gregos que supere isso. Ao mesmo tempo, os citas gritam de
prazer, como se estivessem se banhando em água de rosas e esta
função lhes serve de banho, porque nunca se habituaram a tomar
banho”. O estudo dos braseiros encontrados a leste da mítica Cítia
confirma agora o que foi escrito há 2.450 anos pelo pai da história.
Em 2013, arqueólogos
chineses desenterraram um cemitério em Jirzankal, no extremo oeste
da China. Situado a mais de 3.000 metros de altitude, no planalto do
Pamir, encontraram até agora mais de 30 tumbas. A datação por
diferentes meios situa os enterros entre 2.560 e 2.370 anos. O
cemitério, vinculado talvez ao zoroastrismo, tem várias
peculiaridades: é formado por fileiras de pedras brancas e pretas
alternadas. Nas tumbas, também cobertas por camadas circulares de
pedras das duas cores, foram encontradas pequenas harpas, contas de
vidro e, em uma dezena delas, pequenos braseiros de madeira, alguns
com pedras queimadas, também em branco e preto.
Encontrados restos de cannabis em tumbas na Ásia Central com mais potência que as plantas silvestres |
Aparentemente, e com
exceção das pedras queimadas, dentro dos braseiros não havia nada.
Mas uma olhada mais atenta na superfície interna e nos seixos
descobriu a presença de restos orgânicos que não eram da madeira.
Combinando duas técnicas de análise química (cromatografia gasosa
e espectrometria de massa, GC-MS), os cientistas puderam estudar 20
miligramas de pó coletados nos braseiros e em várias pedras. Em
todas as amostras identificaram a presença de canabinol (CBN),
canabidiol (CBD) e canabiciclol (CBL), três componentes da maconha.
“São as amostras
mais antigas de cannabis fumada”, diz em um e-mail o pesquisador da
Universidade da Academia de Ciências Chinesa e coautor do estudo,
Yimin Yang. Os cachimbos só chegaram a esta região vindos da
América muitos séculos depois, então a inalação da fumaça devia
ser feita como Heródoto descreveu. Colocavam partes da planta no
braseiro e sobre elas dispunham as pedras aquecidas no fogo até que
a fumaça subisse. “Podemos dizer com alto grau de certeza que
usavam a cannabis em algum tipo de ritual funerário”, comenta
durante uma teleconferência o diretor do laboratório de
paleoetnobotânica do Instituto Max Planck de Ciências da História
Humana (IMPCHH) (Alemanha) e coautor do estudo, Robert Spengler.
Plantas de maconha da
mesma época já haviam sido encontradas em sítios arqueológicos
relativamente próximos. Em 2016, por exemplo, no cemitério de
Jiayi, em um antigo oásis de caravanas, foi desenterrado um cadáver
coberto com longos caules de maconha (ver fotografia). “Mas são de
culturas diferentes. Enquanto o cemitério de Jiayi pertence à
cultura subeixi, o de Jirzankal poderia estar relacionado com os
citas”, diz Yang.
A ideia dominante entre
os cientistas é que o cânhamo foi domesticado em grandes áreas da
Ásia, mas para usos diferentes, há milênios. Existem referências
de seu uso como alimento (suas sementes), para a obtenção de óleo
e como fibra, em particular os caules, para confeccionar tecidos. Mas
ainda não havia evidências claras de seu uso como substância
psicoativa. “Do Pamir até a depressão de Turfan (onde está o
cemitério de Jiayi), o cânhamo era muito popular para fins rituais,
mas não há evidências de que os habitantes de Jiayi fumavam
cannabis, assim, em ambos os cemitérios a usavam de forma
diferente”, comenta Yang.
O estudo, publicado
pela Science Advances, vai mais longe. A partir da análise das
amostras, os pesquisadores concluíram que o composto mais presente é
o canabinol. Trata-se de um produto da decomposição por oxidação
do componente mais psicoativo da maconha, chamado tetrahidrocanabinol
(THC). Entre as variedades silvestres, apenas algumas encontradas no
Afeganistão contêm altos níveis de THC de forma natural, sendo o
CBD (que não é psicotrópico e sim medicinal) o mais abundante na
cannabis silvestre. No entanto, quase não encontraram sinal do CBD
nos braseiros. Como os habitantes de Jirzankal conseguiam uma maconha
mais potente? Acaso ou domesticação?
“A planta do cânhamo
foi domesticada há pelo menos 3.500 anos no leste da Ásia,
provavelmente como uma oleaginosa”, lembra Spengler. Mas aqui o
fizeram para fumar maconha. “Os seres humanos sempre buscaram
plantas silvestres que pudessem ter efeitos no corpo humano,
especialmente efeitos psicoativos”, acrescenta. Mas a domesticação
no leste levou a um cânhamo com baixos níveis de THC. “O que
deixa em aberto a questão de saber se havia uma variedade silvestre
com altos níveis que os humanos de alguma forma descobriram ou se
algum processo causou um aumento na produção desses produtos
químicos na planta”, conclui Spengler.
A química da
Universidade do País Basco Aresatz Usobiaga, não relacionada com o
estudo, lembra que “as proporções dos diferentes canabinoides
podem mudar de acordo com as condições ambientais, mesmo que sejam
da mesma variedade”. É o que foi comprovado em vários
experimentos de laboratório. E é o que os autores da pesquisa
sugerem para o que pode ter acontecido em Jirzankal. A região tinha
condições de altitude, baixas temperaturas relativas,
disponibilidade de água e maior radiação ultravioleta que podem
ter estressado as plantas que, em resposta, produziriam maiores
concentrações de THC e, portanto, uma maconha mais potente.
A diretora do IMPCHH,
Nicole Boivin, não acredita que os que foram enterrados em Jirzankal
com essa maconha fossem citas como os descritos por Heródoto.
Acredita que faziam parte de uma rede de comércio por toda a Eurásia
que estava emergindo, uma primeira versão da rota da seda: “O que
vemos em Jirzankal tem mais a ver com os processos de
protoglobalização que acabaram conectando todo o mundo. Outras
drogas e estimulantes viajaram mais tarde em rotas como esta,
provocando a globalização do tabaco, do chá, do café e de outras
drogas de uso cotidiano”.”
Fonte: El País
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